Mal acabam de sair das faculdades
de qualidade duvidosa que lhes forjaram um mundo todo seu, os acadêmicos ocupam
lugares nos órgãos públicos de todo o país, seja no pequeno município ou no
estrelato do Ministério Público. Gente comum que se realiza em duas frentes: na
compra da coisa própria – carro, casa e carrinhos cheios nos supermercados – e
no exercício do poder de polícia do Estado.>>>
MP quer controlar filmes: truculência com asas de anjoCarrão e Grana: imprensa e polícia fazem apologia ao crime
Mães e filhos de santos são expulsos de favelas por traficantes evangélicos
Ministério Público do bem também tem
Recém saídos do mundo caótico do salve-se quem puder, tornaram-se os mais novos modelos de carrascos da sociedade e se refestelam nas certezas da estabilidade que lhes afugenta o medo - tormento dos pobres mortais que permanecem na corda bamba do lado de fora. Nos seus novos cargos são servidores-auditores, fiscais-delegados, investigadores-juízes, procuradores-policiais e por aí afora. Como servidores do Estado eles esquecem que servem à sociedade. Não se iludam. Esses algozes das receitas prontas só adoram e veneram o Estado e suas próprias capacidades administrativas que, para eles, beiram à perfeição. A sociedade é que não presta.
Com essa adoração maquiavélica,
essa nova geração de “administradores do Estado” agarra-se como carrapicho nos
formulários, regras, normas e leis do poder público para a aventura de
encaixar, domar e enquadrar o caos da vida nos padrões que o Estado impõe ao
cidadão e à cidade. Com gosto arrolam para si a tarefa de dirigir o monstro
para nada deixar escapar, pouco se importando se para essa liturgia santificada
não haja adeptos ou se a religião que professam foi trazida do Cáucaso ou dos
leitos do Reno ou do Mississipi. Nem compaixão, nem processo
educativo-formativo, nem relação de confiança para alcançar metas de interesse
geral. O que importa é identificar o crime, punir o culpado e expiar-se da
culpa em nome do dever cumprido.
Nas mãos desses novos fundamentalistas
do Estado, que conseguiram a proeza de serem os melhores no embate das
pegadinhas das provas dos concursos públicos, a visão é a mesma dos
colonizadores do passado, como fizeram os reis de Portugal com o Brasil em toda
a história colonial: o país é atrasado, o brasileiro é preguiçoso e indolente e
a iniciativa privada é suspeita. Ninguém sabe ao certo a que se filiam, mas
olhado de perto, mais parece a um socialismo autoritário de gaveta, que usa a
lei como trator e defensivo agrícola sobre plantações de frutas, pouco se
importando se o solo se destrói ou se milhões de abelhas polinizadoras morrem durante
a aplicação do remédio.
Esse modelo de Estado, que não
depende do governo desse ou daquele partido - pois que nenhum deles possui
força suficiente para dar impulso ou interromper os danos causados pela máquina
estatal - tem produzido décadas de atraso e concentração de renda no campo. Pequenas
propriedades produtoras de subsistência por meação (arroz, milho, feijão,
hortaliças, frutas, verduras etc), por exemplo, foram substituídas por criação
de gado de corte que usa pouca mão de obra. Substituição causada pelo excesso
de exigências e multas constantes do poder público sobre o trabalho.
Independente da duração do ciclo de produção, para eles a mais de três meses de
meação caracteriza vínculo trabalhista, que exige carteira assinada,
recolhimento de impostos etc e por aí vai. A solução tem sido o proprietário da
terra colocar pra fora da propriedade milhões de famílias que sobreviviam da
plantação em parceria, para não se ver às voltas com ações na vara trabalhista,
abrindo espaço para soluções de grandes proprietários de terra que são capazes
de suportar as exigências do Estado, porque são especialistas em obter grandes
saldo da mais valia (que é a parte não paga do trabalho, a que chamamos de
lucro).
Na cidade, invariavelmente, é a
mesma coisa. Recentemente um jornal local divulgou uma decisão judicial que
proibia uma senhora de vender seus queijos numa pequena cidade do interior do
estado de Goiás. A alegação do juiz (bom moço ou sintonizado com esse modelo
perverso, certamente) é que a produção artesanal dela, de mais de trinta anos,
não cumpria as exigências do Ministério da Saúde. Tristes trópicos com disse Lévi-Strauss,
subjugado pelo mundo do paletó e da gravata, que o devia proteger.
Mas não se espantem com tão
pouco. A pamonha, a rapadura e os queijos artesanais e curados de Minas Gerais,
por exemplo, responsáveis por uma infinidade de iguarias – algumas alçadas a
patrimônio nacional como o pão de queijo – só atravessam as fronteiras dos
estados brasileiros como contrabando, pois o
nunca dantes nesse país do ministro Padilha continua seguindo à risca as
normas copiadas da cultura norte americana, demonstrando ser essa a sua visão
da cultura nacional ou, muito pior, não consegue dirigir o seu ministério. Estranhamento,
do outro lado desse mesmo lado, oito anos de gestão de Aécio Neves no Governo
de Minas não foi capaz de descriminalizar o queijo e a produção de subsistência
de milhares de pequenos produtores rurais do seu estado. O governo de Eduardo
Campos seria diferente em Pernambuco? Não nos iludamos.
No Ministério da Educação - nessa
mesma linha de raciocínio superficial e rasteiro que tem transformado os órgãos
de políticas públicas em falsas delegacias de polícia - se uma faculdade
avaliada não atende os requisitos legais para seu funcionamento “a única
alternativa é descredenciar” como afirma um jovem técnico do órgão, mesmo que quatro
mil vidas de estudantes sejam abandonadas ao deus-dará, sem o digno respeito à
cidadania que o governo repete com a eficiência máxima da propaganda pura.
Aliás, cidadania que no mesmo diapasão, fez o Ministério da Justiça espalhar
pelo país uma infinidade de balcões de atendimento que transformou a cidadania
em reles acesso ao registro de nascimento, à carteira de trabalho, à carteira
de identidade e ao atendimento de órgãos públicos de poucos resultados sociais.
Pífio. No caso da Educação, se a responsabilidade social é obrigação dos órgãos
públicos, um plano de ação para descredenciamento da faculdade que protegesse
os estudantes não seria mais apropriado? Certamente é assim que pensa o
ministro Mercadante ou, muito pior, não consegue dirigir o seu ministério
respeitando o interesse público. As soluções do ministro Mercadante só vão até
o limite da “capacidade de fiscalização do órgão”, como ele mesmo gosta de
dizer. A sociedade não existe ou é feita de incapazes, não é ministro?
Para coibir a sangria popular
arbitrada pela ganância dos bancos - que sugam do povo mais de R$ 6 bilhões ao
ano somente com multas de cheques devolvidos, essa tecnoburocracia, como
define Gustavo Luís Gutierrez1, não faz nenhum espetáculo midiático e deixa a fiscalização por conta do
preguiçoso Banco Central e das ouvidorias deles mesmos. Para fiscalizar o
atendimento dos Departamentos de Trânsito e suas políticas de educar com a mão
no bolso do contribuinte, eles não funcionam. Para coibir abusos das empresas
concessionários de transporte e de serviços públicos de água, luz e tratamento
de esgoto, eles funcionam com a lentidão dos correios da idade média. Para
colocar nos trilhos os serviços de saúde do país e seus abusos diariamente
divulgados eles não ouvem, não veem e não falam. Para assegurar vagas na
pré-escola e nas faculdades públicas para milhares de crianças e jovens, eles
não tem educação e são surdos. Para fiscalizar postos de combustíveis que
vendem gato por lebre ao preço que querem, eles não são suficientes. Para
coibir a criminalidade com rondas periódicas pela cidade, alegam falta de
viaturas, comunicadores e pessoal. Mas a segurança pública não falta a nenhuma
manifestação da sociedade em busca da garantia dos direitos assegurados pela
constituição, em número e armamento apropriados para um extermínio em massa. E
é justamente aqui que demonstram sua habilidade em “prender criminosos”.
Todos esses agentes públicos e
seus aparatos custam caro para a sociedade e, como se vê, sua serventia tem
sido duvidosa. Nas estatísticas não há um só mapa dos custos e resultados obtidos
com os recursos gastos nas políticas de governo, seja federal, estadual ou
municipal. Dilma, Campos e Marina engrossam o caldo por um Estado policial e o
Aécio quer um choque de gestão para reduzir o tamanho do Estado. Para todos
eles o Estado policial é consenso.
Esse modelo autoritário de Estado
repete os abusos cometidos na ditadura militar e deveria ter sido estancado
pela Constituição de 1988. No entanto, não é o que ocorre. Ao que parece, todo
o arcabouço jurídico que a constituinte trouxe para proteger o cidadão contra
os abusos do Estado (é por isso que existem cláusulas pétreas, direitos humanos
e outras medidas de proteção que as ruas exigiram e os constituintes escreveram
com zelo), foi colocado de cabeça para baixo por essa tecnoburocracia que
parece ter a sociedade e o cidadão como empecilhos que atrapalham o funcionamento
“correto”, “lógico” e eficiente da máquina. Nesse ambiente insidioso,
egocêntrico, carreirístico e prepotente dos tecnoburocratas radicais, a
constituição vai pelo ralo e seus algozes se apresentam como salvadores da
pátria, atirando uns contra os outros de acordo com interesses políticos do
jogo do poder pelo poder. O estado de direito que se dane, parecem dizer.
Em cada órgão público, com
raríssimas exceções, relatórios viram provas de crimes e auditores viram
promotores de acusação. Consertar essas peças de inquisição moderna (condenação
prévia) costuma render polpudas propinas para servidores públicos, fiscais,
agentes, delegados, promotores, procuradores, juízes, desembargadores e até
ministros. Os danos causados pelos inquisidores são imediatos e midiáticos (e
seus acusadores se credenciam para cargos nos altos escalões do governo) e tem
eficiência invejável, enquanto os consertos desses estragos mofam nas gavetas
da administração pública ou do judiciário. Diante dos estragos produzidos e da
impunidade dos gestores desse modelo de Estado, a impunidade do criminoso comum
é uma gota no oceano.
Recentemente as ruas cobraram com
veemência soluções para os problemas públicos nacionais.
Mas, ao que parece, a
tecnoburocracia legislativa, executiva e judiciária espera dias piores. Mais
pardais, mais prisões, mais multas, mais abusos do Estado e seus governos foram
as respostas apresentadas até o momento.
Nesse processo de desconstituição
do Estado (tudo a ver com desfazer a constituição de 1988), o Ministério
Público representa, hoje, o ápice imperial ou, modernamente, terrorista. Bem
articulado com a imprensa que faz do sensacionalismo o seu pão de cada dia, os tecnocratas
promotores do MP posam para as câmeras de TV e disparam suas metralhadoras
giratórias, fazendo do princípio do “inocente até que se prove o contrário” um
princípio constitucional travestido de sinônimo de impunidade. Curtem ali o
minuto de fama que embebeda egos e faz esquecer que o sucesso é superficial e
balança na corda bamba do lugar comum. Mas os procuradores do MP sentem-se apropriados
para ocupar esse espaço. Que os acusados provem o contrário é sua máxima,
novamente invertendo a lei que determina que “as provas cabem ao acusador”. O
resto do enredo todo mundo sabe. Certo ou errado, o MP não ficará com a culpa.
Isso sim, o máximo da impunidade.
A sociedade esperava muito mais
da luz constitucional trazida pela criação do Ministério Público, cuja
responsabilidade é única: fiscalizar o Estado para que cumpra as determinações
constitucionais. Mas, o que se vê é que ele aliou-se aos jacarés dos fossos que
rodeiam os castelos do poder e luta, veementemente, para perpetuar o descaso, o
abandono e a impunidade dos gestores do Estado com os quais se identifica, travestindo-se
em polícia política a serviço do jogo mesquinho dos governos e da ideologia do Estado
policial. Reinam no caos dos analfabetos funcionais e fazem da constituição uma
peça de retórica, que usam ao seu bel-prazer.
O Ministério Público é
responsável pela fiscalização da polícia, mas parece ocupado com outras coisas,
enquanto o número de mortes produzidas pelos órgãos de segurança supera o de
muitas guerras mundo afora. Mas quem fiscaliza o Ministério Público? Quem é o
rato que se atreve a colocar o guizo no pescoço do gato? Quem paga a conta dos
danos causados aos cidadãos e à sociedade diante de milhares de ações infundadas
que os procuradores do Ministério Público já colecionam país afora? Qual o
custo Brasil desses abusos? Provas forjadas ou inconsistentes, métodos
investigativos inconstitucionais e arbitrariedades midiáticas, são a ponta do
iceberg da truculência do MP, que depreda irreversivelmente os pilares da
democracia, da República e da constituição que Ulisses Guimarães chamou de
cidadã.
Lembrando o imperador francês Luís
XIV, que disse que o Estado era ele, afirmo categoricamente: o Brasil real não
sobreviverá sob o jugo dessa tecnoburocracia imperial, nem sob o jugo dos
procuradores imperadores do Ministério Público. E digo, sem susto, que é melhor que ouçam as
ruas enquanto tudo ocorre dentro dos princípios da República e da democracia.
Se esses reinóis tecnocratas continuarem corrompendo o papel do Estado impunemente, das
manifestações de rua virão as próximas demandas, e um radicalismo caboclo pode
até sair do armário. Nesse momento, não se iludam autoritários
de todos os matizes, a turba das ruas é insana e não respeita leis, muito menos
terno e gravata.
REFERÊNCIA
1 – “os tecnoburocratas
se percebem como um elemento fundamental na sociedade moderna, portadores
únicos de soluções eficientes ou, pelo menos, portadores das soluções mais
eficientes possíveis, responsáveis pelo Estado e pela população e, finalmente,
desvinculado da defesa de interesses específicos de classe ou grupos, já que
buscam apenas soluções ótimas do ponto de vista técnico, com as limitações
inerentes a esse processo”, Gustavo Luís Gutierrez em Tecnocracia e Classe
Social: Algumas Questões Conceituais e Mobilidade Interna.