Em virtude da batalha de Ásculo (279 a.C) - na qual os Romanos foram vencidos e o rei Pirro felicitou seus soldados dizendo que “com mais uma vitória daquelas estaria acabado”, cunhou-se a expressão “vitória de Pirro”, para indicar que em certas vitórias pouco há que se comemorar. Pirro teve noção clara dos estragos causados pela vitória em que morreram três mil e quinhentos soldados seus. O conhecimento da antiga lição nos convida a verificar se estamos diante de situação semelhante no caso da recente decisão do STF>>>
que reconheceu que o Ministério Público (MP) tem “competência para exercer investigações criminais”.
A atermo-nos apenas na aparência e na alardeada comemoração do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, estamos diante de uma vitória estrondosa do Ministério Público que, de acordo com o mesmo, “lutava pela definição do caráter investigativo do MP há mais de uma década”. Mas não haveremos de exigir do magistrado que, na leitura do julgado do STF, tenha a mesma clareza de Pirro na vitória questionável de seu exército sobre os romanos. Talvez com um pouco mais de tempo caia a ficha de Janot.
O caso em questão, analisado pelo STF, dizia respeito a um recurso em que o autor questionava as provas apresentadas contra ele em razão de terem sido “colhidas” por investigação do Ministério Público. Ele alegava que o MP não tinha competência para “investigar”.
Com todo cuidado que a questão requer politicamente, face aos inúmeros processos em que o MP já praticou a “investigação” – processos que ainda transitam nas instâncias de primeiro e segundo graus e que levará tempo para chegar ao Supremo, o STF entendeu que não havia como afastar o Ministério Público do campo investigativo, vez que o órgão orienta e reorienta o inquérito, mesmo quando não investiga diretamente e, nas palavras de Celso de Melo, “quem pode mais, pode menos”.
Essa vitória de Janot, com sete votos num colegiado de 11, não existiria se fossem considerados os impedimentos (art. 134 CPC) dos ministros Celso de Melo e Luiz Fux (ex-promotores do Ministério Público), obviamente contaminados pelas “prerrogativas” que o MP atribui a si mesmo. O que também ocorreria se considerássemos a suspeição (art. 135 CPC) do ministro Gilmar Mendes, proprietário e membro do corpo docente do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que é conveniado com a Associação dos Servidores do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, o Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério Público da União e o Conselho Nacional do Ministério Público, contando com diversos membros do Ministério Público no seu corpo docente.
No site, que faz da suspeição o “diferencial” da instituição, anuncia-se que “por módicos R$17,1 mil reais numa pós-graduação de 360 horas com aulas na sexta-feira à noite e sábado pela manhã (sic), “os profissionais e estudantes da área jurídica têm a oportunidade de aprender diretamente com quem faz doutrina e jurisprudência no Brasil”..., ...“sem preconceitos nem discriminações, numa palavra, por cima das ideologias que persistem em dificultar o entendimento humano”. “
Ideologia da "Lei do Gerson”, que não se envergonha de fazer estragos na segurança jurídica nacional, sustentada sobre os ombros de tantos doutos senhores para lançar no lodo o conhecimento filosófico, afirmando ser possível estar “acima das ideologias”. Conveniente.
Mas, como “de perto ninguém é normal” – como na canção Vaca Profana, de Caetano Veloso, uma leitura mais apropriada pode esclarecer se o Procurador-Geral da República teve razão para comemorar ou tentou tapar o sol com a peneira. Transcrevo todo o enunciado esclarecendo suas partes:
“O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias...
Duas coisas essenciais aqui: prazo razoável, que quer dizer que o MP não pode abrir uma investigação que nunca acaba, e respeitados os direitos e garantias, que quer dizer dentro dos limites impostos pelos artigos 5º a 17 da Constituição Federal. Uma releitura é fundamental nessa hora. Continuando o enunciado do STF:
...que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição...
Esse princípio se refere a submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização somente pode emanar do juiz, inclusive daqueles a quem se hajam eventualmente atribuído "poderes de investigação próprios das autoridades judiciais". Ou seja, para a legítima efetivação de determinados atos, notadamente daqueles que implicam restrição a direitos, que sejam eles ordenados apenas por magistrados. Seguindo:
...e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei nº 8.906/94, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX),...
Aqui se impõe: não é permitido aos membros do MP impedirem o acesso dos advogados a documentos sob a alegação de sigilo quando a apuração da atividade instrutória já tiver sido formalizada documentalmente, porque o resultado da instrução não pode ser subtraído ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. Finalmente:
...sem prejuízo da possibilidade, sempre presente no Estado democrático de Direito, do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante nº 14), praticados pelos membros dessa Instituição.”
Aqui se esclarece que os atos praticados pelos membros do Ministério Público sujeitam-se ao permanente controle jurisdicional, caso infrinja todas as premissas anteriores elencadas e, também, a Súmula Vinculante nº 14, que reforça: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Vejamos então. Se “quem pode mais, pode menos”, como disse o ministro Celso de Melo, podemos dizer que, no caso da comemoração de Janot, “muita trovoada é sinal de pouca chuva”. Janot declarou ao G1 no mesmo dia do julgamento: "É dia de festa para o Ministério Público Federal e para o MP brasileiro porque hoje conseguimos alcançar uma situação que buscamos há mais de 10 anos. (...). Na pressa, Janot desconsiderou o cuidado do STF ao reconhecer a competência do MP para promover investigações por conta própria. O reconhecimento veio acompanhado de um check list que, longe de reconhecer a prerrogativa do órgão, apenas nos revela que o MP esteve extrapolando esses limites nos últimos 10 anos.
A decisão do STF, ao esclarecer limites para a atuação do MP nos procedimentos investigativos, foi um balde de água fria nos arroubos até aqui praticados pelo órgão. Caso assim não fosse, bastaria ao STF reconhecer o poder de investigação do MP e ponto final. Aí sim, estaria justificada a alegria de Janot. Ainda, para sancionar essa decisão, os ministros do STF não se cansaram de propugnar a necessidade do “trabalho conjunto” entre o MP e a polícias, do que se pode constatar que é do conhecimento de todos eles que esses órgãos vivem um embate pouco edificante para a sociedade.
Sendo assim, cabe perguntar: quantas vitórias como essa serão necessárias para o MP cumprir sua verdadeira atribuição de órgão que fiscaliza o Estado para assegurar aos cidadãos e à sociedade os direitos inscritos na Constituição Federal?
Mas alguma mudança está em curso. De acordo com notícia publicada no jornal O Tempo (7.08.2015), em palestra na Escola Superior Dom Hélder Câmara em Belo Horizonte, Janot aponta que pode estar em curso o reconhecimento das aberrações midiáticas produzidas pela divulgação prévia de delações, no caso Lava Jato e em muitos outros espalhados pelo país: “A delação premiada não serve de prova, mas te dá todas as circunstâncias para chegar ao caminho da prova". O que houve, caro Procurador, depois do enunciado do STF que definiu os parâmetros da investigação própria do MP, há insegurança quanto aos limites legais utilizados para a obtenção das delações que os tornem passíveis de questionamento nos órgãos judiciais superiores?
Que nos perdoe o Procurador-Geral da República, mas a precipitada comemoração do resultado dessa batalha que definiu os parâmetros para a investigação do MP nos convida a atualizar a vitória de Pirro, chamando-a, agora, de vitória de Janot.
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