Poderes de direito e poderes de fato
Essa nossa Constituição brasileira é engraçada e, como telhado único que nos acolhe, parece estar cheia de goteiras. Nela tudo é bonito. A democracia é feita de três poderes: executivo, legislativo, judiciário. Poderes que se definem assim, no dicionário Michaelis: “faculdade de impor obediência; autoridade, mando”. Numa sociedade democrática, tudo indica que somente esses três pilares têm, efetivamente, “posse, jurisdição, domínio e atribuição” para o exercício do poder.>>>
Na nossa Constituição, no entanto, diversos órgãos “auxiliares” desses poderes, se comportam como se outros poderes fossem. Cito como exemplo o Tribunal de Contas da União (TCU), órgãos auxiliar do Congresso Nacional, que pratica tão elevado grau de autonomia que acaba se constituindo num novo poder de fato, perfurando o guarda-chuva constitucional e deixando goteiras insistentes sobre nossas cabeças.
Ora, de acordo com o art. 71 da Constituição Federal, o controle externo da administração pública federal é exercido pelo Congresso Nacional, auxiliado pelo TCU, a quem cabe as atribuições inscritas nos incisos I a XI do mesmo artigo.
Parece óbvio, por sua condição de “auxiliar”, que o trabalho do TCU deve ser submetido ao Congresso Nacional, a quem cabe o controle externo. Mas não é isso que acontece. O Tribunal de Contas esquece sua condição de “auxiliar” (teríamos dúvida quanto o que significa auxiliar?) e sai por aí mandando e desmandando. No máximo faz um relatoriozinho de três em três meses para o Congresso Nacional, que treme de medo do seu “órgão auxiliar”, lembrando-nos aquela brincadeira infantil da mão-boba que balança, balança e acaba acertando a cara do bobo que ficou olhando.
Não vou aqui entrar no mérito de que os ministros do TCU são “nomeado pelo presidente da República” (1/3) e pelo Congresso Nacional (2/3) (§ 2º do art. 73 CF). Nem colocar em dúvida, diante de tal poder de fato, que tais fiscalizações, inspeções e auditorias podem ser orquestradas sob a “orientação” de quem os indica, além de outras amizades. “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro no bolso”, diz o dito popular, lembra? Basta que um dos seus ministros seja tomado pela vontade (isso é a cara do poder de fato) de passar um “pente fino” em qualquer contrato, convênio ou outro tipo de transferência ou aplicação de recursos públicos, para que uma ilegalidade seja pinçada (“para os amigos os favores da lei, para os inimigos os rigores da lei”, ensina o povo) e o fiscalizado passa a ser tratado como bandido, com direito à mídia antes do direito de defesa. Presunção de inocência e outras princípios constitucionais, esses poderes de fato não respeitam quando lidam com o cidadão. Há um tal conluio de presunção de veracidade entre esses órgãos (MP, TCU, CGU etc) que quando recebem documentos uns dos outros, nem se dão ao trabalho de verificar se as garantias constitucionais foram respeitadas. Pior, se todo poder pressupõe possibilidade de corrupção, o TCU, nessa práxis sujeita a vontades, não se exclui disso. Mas quem o fiscaliza?
O poder não gosta de ser questionado e persegue quem o questiona. E, se esse poder for apenas um poder de fato, então os riscos são maiores. Os órgãos que fiscalizam sem serem monitorados têem instrumentos em seus palácios para transformar qualquer cidadão em bobo da corte e jogar lama no que quiser. Se não encontra, inventa. O poder (leia-se, pessoas), principalmente o poder de fato, usa o seu peso (legitimidade) sem ruborizar. Ouso tratar desse assunto, porque sou um brasileiro, louco para ver esse país funcionar como um verdadeiro estado de direito, porque, de fato, ainda não é. Veja essa: o cidadão “é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades” (§ 2º, art. 74 CF), mas, nesse mesmo artigo... perante o Tribunal de Contas da União. Que ingenuidade a minha!
Para entender melhor como o abuso de autoridade e as ditaduras vão se estabelecendo lentamente, só retomando a leitura de “A Revolução dos Bichos” de George Orwell. Essa garotada, que passou em concurso público e confunde suas provas com títulos de nobreza, deveriam ler com carinho esse e o último discurso de Sócrates. Assim, talvez possam, pela empatia - que vai muito além do esforço intelectual, perceber que o poder gostoso é socialmente perigoso. E a acusação eficiente pode levar à morte um inocente. Rimou.
Na lista desses órgãos que exercem um poder de fato, enquanto dorme “a pátria mãe tão distraída” (Chico Buarque), infelizmente temos casos ainda piores, quando o poder, de fato, se auto-institui e se apresenta como poder de direito. É o caso do Ministério Público, a quem caberia tratar do tema desse artigo, que é o abuso do exercício de poder sem ter direito, e os atos “legislativos” dos órgãos de estado e de governo, que extrapolam, reduzem, extinguem ou omitem direitos garantidos pela constituição e pelas leis. Caos que provoca enxurrada de processos judiciais e, ainda, ocupa o Congresso Nacional com decretos legislativos para “suprimir” ilegalidades na edição de normas infralegais.
O MP não tem prerrogativa para legislar, sendo essa uma de suas funções secundárias que, obviamente, não pode extrapolar os limites da lei. No artigo 129, inciso II, que trata de suas funções institucionais, cabe ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. No entanto, a justiça está repleta de ações promovidas pelos procuradores do próprio MP em total desrespeito aos direitos assegurados na Constituição, principalmente o contraditório e a ampla defesa, com o agravante de que o MP chega a exigir obediência cega, inclusive do judiciário – que ele despreza, a seus regulamentos internos, mesmo que estes estejam em confronto com a lei e a constituição.
O poder do MP “investigar” é uma dessas pérolas da práxis de auto-instituir poderes. A constituição não lhe atribui isso, nem lei alguma. Mas o próprio Conselho Nacional do MP aprovou a Resolução nº 13 que cria essa atribuição. Agem acima da lei e da constituição, alegando, numa inversão vergonhosa que “a Constituição não vedou expressamente”, quando o correto seria assumir sua condição de órgão do poder público (ou é privado?) cujo princípio é “só poder fazer o que está definido em lei”, garantia de que seus atos passaram pelo crivo do poder legislativo, que “emana do povo”, lembra?
Agrava essa situação o fato de que o MP “sequer responde por denunciação caluniosa”, de acordo com as palavras do ministro Marco Aurélio Mello do Supremo Tribunal Federal, em sessão de fevereiro de 2014, mesmo se ficar provado que a investigação era falsa, que o inquérito foi montado, que a escuta era ilegal e que não havia provas. Curioso, ainda, que tenhamos que culpar o MP pelas ações autônomas de seus procuradores, quando estes fazem o que querem e quando querem, porque não há subordinação dentro do órgão.
Desse modo, explica-se a impossibilidade do MP perceber quando os órgãos de controle da administração pública lentamente se transformam em tribunais de exceção que “atiram primeiro para depois perguntar”, abrindo verdadeiros buracos no nosso telhado-constituição. E não há a quem o cidadão possa recorrer, já que exatamente caberia ao MP zelar pelo respeito aos direitos assegurados na constituição.
Quando nega cumprir sua primordial função, preferindo militar em busca de um papel “policial” para o órgão, os procuradores do MP acabam sucumbindo à ineficiência (por falta de pessoal especializado), à ingerência política (por excesso de poder) e ao autoritarismo (por excesso de autonomia e ausência de controle). Onde fica o interesse público? O que a sociedade fará se descobrir que os procuradores do MP transformaram o órgão em um embuste, logro e ardil que optou por uma visão policialesca de suas atribuições?
A sociedade precisa de um Ministério Público forte, eficiente e fiscalizador, que assegure que os operadores do Estado respeitam a Constituição e as Leis. A sociedade não pode ir às ruas em vão, nem concluir que a Constituição é peça de decoração conduzida pelos egos dos operadores do Estado.
Francisco Morbeck
Jornalista
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