OPINIÃO
“A vontade daqueles que detêm o poder”
“A vontade daqueles que detêm o poder”
Minha mãe, na UTI de hospital
privado aos 93 anos lutando contra uma embolia pulmonar desde 22 de abril, está
mais segura que o Brasil neste momento. Ela, ao menos, conta com cuidados
médicos e a integral vontade/torcida/dedicação da família pelo seu
restabelecimento. Aliança médica-familiar cujo único objetivo é preservar-lhe a
vida. O governo Dilma também está na UTI, mas ao contrário de minha mãe, corre
o risco de não ser tratado com o objetivo de preservar-lhe a vida.
Regularmente tenho tratado de
questões relativas ao abuso de poder das instituições e dos agentes públicos do
Estado. Em virtude, talvez, de exagerar no reconhecimento do legado dos
constituintes de 1988 que, do primeiro ao último artigo da Constituição nos
prepara: o Estado é um mal necessário, mas tão perigoso que outra coisa não fazemos
aqui senão municiar a sociedade contra seus históricos, previsíveis e,
inaceitáveis, abusos.>>>
No Brasil, em virtude da nossa cultura forjada no período colonial português de “oposição aos governos centrais” e a pouca expressão da sociedade organizada, muitos operadores do Estado têm anseio/desejo/preferência por uma regular postura anti-Governo. Tentam omitir suas responsabilidades como agentes públicos governamentais escondendo-se sob o manto da pretensão de um modelo de “Estado acima de tudo e de todos”, pouco importando se comportam-se como um governo dentro de outro governo. Exagero? Nem tanto.
Quanto aos temores da Constituição no que se refere aos abusos do Estado, reforça esse entendimento a infinidade de garantias do art. 5º e o fato de existir um Ministério Público, bem claro nas suas funções de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, e zelo “pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição” – (arts 127 e 129 da CF). Claríssimas definições (art. 5º) reforçadas pela criação do MP como órgão encarregado de defender a sociedade contra as arbitrariedades nas omissões e ações dos agentes públicos. Faltou, apenas, definir quem se encarrega desse zêlo quando o agente arbitrário é o próprio Ministério Público, pois é de enorme insegurança admitir que tal tarefa caiba a ele mesmo, principalmente quando a autonomia é levada ao extremo de permitir que seus procuradores não tenham que se submeter nem ao próprio órgão.
No outro viés, da ideologia anti-governo que o debate da autonomia tem carregado, ao pretender um Estado autônomo em relação aos governantes – evidente desrespeito à submissão dos agentes públicos ao princípio do poder que emana do povo (§ único art. 1º CF), a ponta desse iceberg fica hoje expressa na tramitação da PEC 412/2009 na Câmara dos Deputados, em que a Polícia Federal tenta obter a mesma autonomia assegurada ao MP. Anseio de poder ilimitado que viceja em todos os níveis, a ponto de a Câmara dos Deputados ter que incluir entre suas atividades a edição de Decretos Legislativos para “corrigir” interpretações (regulamentos, portarias etc) dos órgãos públicos que negam direitos estabelecidos na constituição e nas leis.
Em defesa da PEC 412/2009, representantes da Polícia Federal na Câmara dos Deputados e no Senado Federal alegam que outros órgãos “receberam o devido enaltecimento institucional”, citando a Defensoria Pública da União, os Tribunais de Contas (TCs), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o Banco Central do Brasil (BCB), a Controladoria-Geral da União (CGU), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), as Agências Reguladoras e as Universidades, além de outros do Executivo Federal como a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão interno do Ministério da Justiça. O que para eles parece simples: se eles têm autonomia, nós também queremos. Para outros pode parecer uma sinal de alerta: mais e mais órgãos autônomos sem formas claras de submissão a algum controle externo.
À toda autonomia deve corresponder um grau elevado de controle externo, que nesse caso só teria efetividade se fosse controle da própria sociedade. Mas não é o que ocorre, e a sociedade vê-se diante do risco de assistir a exacerbação do abuso de poder e, consequentemente, o flanco aberto para a possibilidade de negociações escusas que podem conduzir à corrupção das leis e dos agentes públicos. Esse enaltecimento, como diz a Polícia Federal, está tão descolado de uma concepção de princípio, que chega ao ponto de jogar um órgão contra o outro: a polícia prende e a justiça solta, alegam, como se a justiça não estivesse baseada nas mesmas leis que a polícia tem que obedecer.
Não nos iludamos, denúncias da imprensa e a infinidade de ações do MP negadas pelo judiciário, são provas efetivas de que a montagem de um inquérito, o resultado das investigações do MP, da Polícia Federal e de qualquer um desses órgãos de controle, podem se transformar em moeda de troca nas mãos de brasileiros que se orgulham de serem aliados da lei do Gerson: o importante é ter vantagem em tudo. Como saber se o dinheiro, ou a droga, aprendidas numa ação policial não seja desviada antes do registro da ocorrência? Duvidam da conivência do criminoso nesse caso? É melhor ser preso com um milhão ou com cem mil reais? Não se trata aqui de colocar em dúvida todas as pretensões desses órgãos por maior autonomia. Mas, convenhamos, de boas intenções o inferno está cheio.
Nesse jogo de poder em que o próprio Executivo e o Congresso Nacional podem virar simples caixa de ressonância ou mesmo reféns, estão em desvantagem aqueles que querem respostas para essas questões e podem, até, sofrer perseguições. Por outro lado, levam vantagem os agentes públicos que tem organizações bem estruturadas, representantes em todas as esferas de poder e pessoal para fazer pressões ostensivas pela modificação ou edição de leis ao seu bel prazer. Nesse ambiente, sob pomposos discursos de interesse social e público, a polícia pode não se orientar pelo interesse público, nem o MP, nem a CGU, nem a DPU, nem a AGU, nem os TCs, nem a OAB, nem o Cade, nem o BCB, nem a CVM, nem as Agências Reguladoras e nem as Universidades. Alguém se espantaria com isso?
Antes de se proceder com essa cadeia de concessões de autonomia, que a PEC 412/2009 agora anseia - aparentemente isolada e sem conectividade entre os agentes públicos que praticam esse lobby, é preciso promover o debate democrático sobre o papel da autonomia em relação a função social dos órgãos públicos e do Estado. Sem isso, tudo não passará de um jogo de interesses que pode desenhar uma ruptura com o estado de direito e a governabilidade, corrompendo a democracia brasileira e confirmando Leon Tolstoi: “Mas a verdade é que não só nos países autocráticos como naqueles supostamente livres - como a Inglaterra, a América, a França e outros - as leis não foram feitas para atender à vontade da maioria, mas sim à vontade daqueles que detêm o poder”.
Minha mãe, como constatei em visita ontem, se recupera bem, apesar de erros médicos que a levaram a prejudicar os rins por uso de antibiótico sem considerar efeitos colaterais, a ter o braço super inchado em virtude de um cateter mal colocado que “vazou” e a ter que receber transfusão de sangue em virtude da debilidade provocada aos rins. Ainda bem, apesar de tudo, pois ninguém queria o contrário. E o Brasil também vai sair mais forte dessa crise silenciosa e desconsiderada, promovida pelo establishment. Terá seqüelas produzidas por esses intocáveis especialistas, mas sobreviverá, pois não faltam quem o queira fora de perigo. Na voz de Elis Regina “Do Brasil, SOS ao Brasil”.
Francisco Morbeck
Jornalista
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