quarta-feira, 19 de outubro de 2016

CONSTRUÍNDO O ESTADO DE EXCEÇÃO: Ameaça à imprensa: Juíza quebra sigilo telefônico de jornalista de ÉPOCA

A medida, tomada para tentar descobrir quem vazou no governo o relatório do Coaf à revista, viola o direito constitucional do sigilo à fonte; Aner impetra habeas corpus em favor do jornalista

A juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara Federal de Brasília, determinou a quebra de sigilo telefônico do colunista Murilo Ramos, da revista ÉPOCA. A medida foi tomada secretamente em 17 de agosto. O jornalista não é suspeito de nenhum crime. O objetivo da grave suspensão do direito constitucional do colunista é um só: tentar descobrir a identidade >>>
<<< de uma das fontes do jornalista. Na sexta-feira, dia 7 de outubro, após tomar conhecimento do fato, a Associação Nacional de Editores de Revista, a Aner, impetrou habeas corpus, com pedido de liminar, em favor do jornalista. A defesa pede a suspensão imediata da decisão da juíza. O habeas corpus foi distribuído ao desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
A decisão da juíza foi provocada por representação do delegado da Polícia Federal João Quirino Florio. Ele contou com a anuência da procuradora da República no Distrito Federal Sara Moreira de Souza Leite. Em abril do ano passado, o delegado Quirino foi encarregado de investigar o vazamento a ÉPOCA de um relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf. Nele, os investigadores do Coaf listavam os brasileiros suspeitos de manter contas secretas na filial suíça do HSBC, no escândalo conhecido como SwissLeaks. A investigação do Coaf e o teor do relatório foram revelados por ÉPOCA em fevereiro de 2015, em reportagem que contou com a apuração de Murilo Ramos.
Em 20 de abril deste ano, após afirmar que Receita, Coaf e Banco Central não haviam conseguido descobrir a origem do vazamento, o delegado João Quirino pediu à juíza que quebrasse o sigilo do colunista Murilo Ramos. Fez esse pedido antes mesmo de tomar formalmente o depoimento do colunista, segundo despacho obtido por ÉPOCA. “A única maneira de chegar ao autor do crime, que é grave, pois poderia comprometer todo um sistema de segurança de informações vitais para o funcionamento de toda uma economia, seria o cruzamento de chamadas de Murilo nos dias que antecederam a entrevista que [sic] cruzá-lo com os telefones das pessoas que poderiam ter acesso aos dados”, escreveu o delegado à juíza Pollyanna Kelly.
Meses depois, em julho, o colunista de ÉPOCA foi ouvido pela PF. Não sabia que o delegado já pedira a quebra de sigilo telefônico. Recusou-se a revelar a identidade de fontes envolvidas na produção da reportagem. Para isso, invocou, como sempre fazem jornalistas em casos semelhantes, o direito constitucional ao sigilo da fonte. Esse direito é previsto na Constituição brasileira e consagrado no ordenamento jurídico da maioria das democracias ocidentais. Tal proteção ao trabalho do jornalista está consolidada em leis e nas doutrinas legais pela simples razão de que, sem ela, a sociedade teria muito mais dificuldade para ter acesso a informações de interesse público. Entende-se, inclusive nos principais tratados assinados pelo Brasil, como o Pacto de San José da Costa Rica, que qualquer obstáculo à liberdade de imprensa configura-se um obstáculo ao próprio exercício da democracia.
Não se trata de um direito controverso. O Supremo Tribunal Federal brasileiro tem posição pacificada sobre o assunto: não se pode violar o direito do jornalista de manter fontes em segredo. Escrevia, há 20 anos, o decano do Supremo, ministro Celso de Mello: “A proteção constitucional que confere ao jornalista o direito de não proceder à disclosure da fonte de informação ou de não revelar a pessoa de seu informante desautoriza qualquer medida tendente a pressionar ou a constranger o profissional da Imprensa a indicar a origem das informações a que teve acesso, eis que – não custa insistir os jornalistas, em tema de sigilo de fonte, não se expõem ao poder de indagação do Estado ou de seus agentes e não podem sofrer, por isso mesmo, em função do exercício dessa legítima prerrogativa constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil ou administrativa”.

O delegado João Quirino. Ele foi encarregado de investigar o vazamento
de um relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf
(Foto: Reprodução)
   
Tais princípios internacionais, consolidados no Direito brasileiro há décadas, foram ignorados pelo delegado João Quirino e, também, pela procuradora Sara Leite. Num despacho de três páginas, assinado no dia 3 de agosto, ela concorda com o delegado da PF. Assim como João Quirino, não argumenta por que o direito constitucional ao sigilo da fonte merece ser anulado, nesse caso, em prol da possível descoberta do autor do vazamento do relatório. “Verifica-se a razoabilidade e a necessidade da medida investigativa proposta, especialmente porque o jornalista, que poderia identificar a pessoa que lhe forneceu as informações sigilosas, recusou-se a fazê-lo, alegando o direito de preservar o sigilo da fonte”, escreveu a procuradora Sara Leite. Ela chega a argumentar que a entrega dos extratos telefônicos não configurariam quebra de sigilo telefônico, dado que não há interceptação do conteúdo das conversas em tempo real.
Diante do pedido do delegado e da concordância da procuradora, a juíza Pollyanna Kelly precisou de somente três páginas para decretar a quebra, semanas depois. “A medida pleiteada [a quebra do sigilo] mostra-se imprescindível para apurar os fatos noticiados”, disse a juíza. “Registro que a proteção constitucional ao resguardo das comunicações não se mostra absoluta diante do interesse público em esclarecer o suposto delito.” Ela determinou às operadoras que enviassem os extratos do colunista diretamente ao delegado.
No habeas corpus impetrado nesta sexta-feira (7) no Tribunal Regional Federal da 1ª região, a Aner pede a suspensão dos efeitos da decisão judicial que determinou a quebra do sigilo telefônico, o sobrestamento da tramitação do inquérito em curso perante a 12ª vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal e a suspensão da quebra do sigilo telefônico. No caso de a operadora telefônica já ter fornecido as informações do sigilo telefônico à autoridade policial, a defesa solicita que elas venham a ser “absolutamente destruídas” até o julgamento final do HC.
Os advogados sustentam que a quebra do sigilo telefônico, que é uma medida cautelar extrema, traz para o jornalista “uma condição inequívoca de investigado, fato que traduz uma absoluta falta de justa causa, pois fere o sagrado direito constitucional inerente ao jornalista, que é a liberdade de expressão e o direito de informar”. Os advogados lembram, ainda, que o sigilo de fonte está assegurado pela Constituição Federal em seu Artigo 5º.
Em nota conjunta divulgada neste sábado, dia 8 de outubro, a Aner, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) criticaram a decisão da juíza. “A quebra do sigilo telefônico de um jornalista implica em gravíssima violação ao direito constitucional do sigilo da fonte e ao livre exercício da profissão de jornalista”, dizem as entidades no documento. “A ABERT, a ANER e a ANJ repudiam a decisão da juíza e reforçam que não há jornalismo e nem liberdade de imprensa sem sigilo da fonte, pressuposto para o pleno exercício do direito à informação.”
Tendência preocupante
O caso do colunista de ÉPOCA, infelizmente, não é inédito. Há dois precedentes recentes – e igualmente inconstitucionais. No mais grave deles, a PF indiciou um jornalista do Diário da Região, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Também com apoio do Ministério Público, a polícia queria descobrir a identidade das fontes do repórter, que revelara o teor de uma investigação sigilosa sobre corrupção no município. A Justiça aceitou quebrar o sigilo telefônico do jornalista. Foi preciso que o jornal recorresse ao Supremo para anular a decisão.
Caso semelhante transcorreu no ano passado no Superior Tribunal de Justiça. O governador Fernando Pimentel (PT) pediu a quebra de sigilo telefônico de um jornalista – e voltou atrás. Seus advogados, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, e Pierpaolo Bottini, solicitaram ao STJ a quebra de sigilo e o interrogatório de um repórter do jornal O Globo. Pimentel queria descobrir as fontes que vazaram ao veículo informações da investigação que corre contra ele na corte. O ministro Herman Benjamin, relator do caso no STJ, determinou que a PF investigasse, por igual razão, repórteres de ÉPOCA. Diante da repercussão negativa, os advogados do governador desistiram da ação.
Em países como Estados Unidos, o sigilo constitucional ao sigilo da fonte é questionado, e ainda assim sob intensas críticas, somente quando a Segurança Nacional entra em jogo. Em 2015 por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou apelo do repórter James Risen, do New York Times, duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer, para não ter de depor e revelar a identidade de uma fonte. Durante sete anos, Risen lutou para não ter de testemunhar no julgamento de Jeffrey Sterling, ex-agente da CIA, acusado pelo Departamento de Estado de passar a Rise informações sobre uma operação secreta do governo americano para sabotar o programa nuclear do Irã, exposta em um dos capítulos do livro State of war. Quando perdeu, Risen ficou sujeito à prisão, caso não colaborasse. Na investigação, o Departamento de Justiça obteve secretamente e-mails e registros telefônicos de contatos entre Sterling e Risen. Desde então, Risen afirma que, apesar da desistência, ao ir tão longe, o governo Obama arranhou a Primeira Emenda da Constituição americana.
Nos anos pós WikiLeaks e Edward Snowden, as autoridades estatais no mundo todo, mesmo em países de longa tradição democrática, parecem empenhadas em enfraquecer o já estabelecido, e mais que necessário, princípio do direito ao sigilo da fonte de jornalistas. Um estudo da Unesco de 2015 mostra que entre 2007 e 2014, nos mais de 100 países pesquisados, o direito a sigilo da fonte tinha sido sistematicamente atacado, ou por legislações referentes a segurança nacional e antiterrorismo ou sendo submetido a vigilância individual ou em massa e ainda colocado em risco pela retenção de dados obrigatória. “O marco legal que protege as fontes confidenciais de jornalistas internacionalmente é essencial para a publicação de informações de interesse público – informação que de outra maneira poderia nunca ser descoberta”, diz o documento.

Fonte: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/10/ameaca-imprensa-juiza-quebra-sigilo-telefonico-de-jornalista-de-epoca.html

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