segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

MARCHA REABRE DEBATE SOBRE OS PILARES DA REVOLUÇÃO FRANCESA

OPINIÃO
3,8 milhões nas ruas e o desencontro entre liberdade, igualdade e fraternidade
Duzentos e vinte e quatro anos após a Queda da Bastilha, quando 3,8 milhões de franceses foram às ruas dizendo “eu sou Charlie”, num protesto contra o ato terrorista que invadiu o jornal Charlie Hebdo, matando doze profissionais da imprensa em Paris no dia 7 de janeiro passado, somos obrigados a endossar a ocupação das ruas, mas, ao mesmo tempo, cabe-nos analisar o fato com cautela, para evitar que sejamos vítimas do terrorismo ou da reação que agora poderá se desencadear em diversas formas de marginalização, estigmatismo e outras discriminações nas quais poderemos estar incluídos. 
Os três pilares da Revolução Francesa de 1789 ainda hoje ecoam em todos os cantos do mundo: liberdade, igualdade e fraternidade. Eles sintetizaram a fúria com que os franceses romperam com o feudalismo, a aristocracia, o clero e a monarquia que as sustentava.
Liberdade: os servos deveriam ser livres para decidir sobre onde morar e onde trabalhar;
Igualdade: não deveria mais haver homens com direitos e homens sem direitos;
Fraternidade: não se deveria mais aceitar que a nobreza e o clero se apropriassem das riquezas enquanto milhões permaneciam na pobreza e na miséria absolutas.>>>

Resultou dessa tríade iluminista a liberdade dos servos, a queda da monarquia, a ascensão política dos novos ricos (burgueses) ao centro do poder e um banho de sangue de “irmãos” sem precedentes na própria história da França.
Como periféricos deste país tropical, não é comum que conheçamos a história completa da Revolução Francesa e os desdobramentos que se seguiram, como a Primeira República Francesa, o Iº e o IIº Impérios e a Comuna de Paris. Muito menos nos é dado saber se a chama da “liberdade, igualdade e fraternidade”, tenha sido encoberta por uma névoa espessa, lenta e implacável nos últimos dois séculos.
Sabemos apenas que nesses anos que nos separam da Revolução Francesa, que criou a sociedade moderna, muitos Estados se organizaram, dando prevalência a esse ou aquele princípio da tríade revolucionária, ou a tentativa de combinação de dois deles. No entanto, nenhum pretendeu usá-los ao mesmo tempo e, pelo pouco que sabemos, nem mesmo a sociedade francesa.
Nos países europeus, que derrubaram suas monarquias ou optaram por conviver pacificamente com elas, a liberdade foi amplamente exercida. Mas a fraternidade foi transformada em ato de virtude religiosa e a igualdade em uma infinidade de cartas de princípios, que nunca os impediram de praticar a escravidão nem o genocídio.
Nos Estados Unidos, cuja luta contra a colonização inglesa acabou por significar uma revolução no modelo de organização do território americano independente, também a liberdade foi o princípio que estruturou sua trajetória. Mas a fraternidade, bem ao estilo inglês, nunca passou de gestos individuais e grupais em prol de causas mundiais pontuais. Quanto à igualdade...
Ao longo dos anos, uns mais depressa e outros nem tanto, a quase totalidade dos países ocidentais repetiu o modelo: liberdade, democracia representativa e separação de poderes.
Quanto às Revoluções soviética (1917), chinesa (1949) e cubana (1959), sabemos que elevaram os princípios da igualdade e da fraternidade ao pódio, mas aboliram radicalmente a liberdade, por entender que a mesma favorecia a exploração do homem pelo homem. Situação muito diversa nos dias de hoje, quando se vê que esses antigos modelos se amoldam em direção à liberdade que os capitais movimentam.
Mas, voltando à França - e ao seu mais novo trauma político provocado pelo ato terrorista, é preciso ressaltar que os revolucionários franceses de 1789 apresentavam os três princípios em conjunto: liberdade, igualdade e fraternidade. Bem diferente do atual presidente francês, François Hollande, que fez da defesa da liberdade, leia-se “liberdade de imprensa”, um princípio auto-suficiente que prescinde da igualdade e da fraternidade.
Somos todos a favor da liberdade de imprensa. Mas, qualquer liberdade exercida sem combinar, ao menos, com um dos dois princípios da tríade francesa, resvala para um profundo e inaceitável desrespeito à liberdade da palavra, de crença e de viver sem o temor da necessidade, conforme descrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Assim, sendo impraticável que a liberdade de imprensa assegure a “igualdade” de opiniões, que a descaracterizaria, seria de se esperar que a liberdade de imprensa andasse par e passo com a fraternidade. E, recorrendo ao dicionário Michaelis vemos que a fraternidade significa: parentesco, solidariedade, união ou convivência entre irmãos; amor ao próximo; harmonia entre os homens.
Esse não foi, com certeza, o caminho seguido pelo jornal Charlie Hebdo que, desde o seu nascimento - porque se define como veículo anti-religião, promove a execração e a injúria de profetas, deuses e santos de todas as culturas, instigando e sobrevivendo da ignorância de parcela do povo francês ao criticar a suposta ignorância dos que professam alguma fé.
Ademais, a crítica semanal mordaz, ofensiva e depreciativa do Charlie Hebdo às religiões por décadas, não seria um abuso discriminatório que violenta o direito à liberdade de crença? Qual a parte do legado da Declaração dos Direitos do Homem que nos deu a própria Revolução Francesa (agosto de 1789) não foi compreendida pelos editores do semanário que sofreu o atentado terrorista?
Declaração dos Direitos do Homem
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Art. 4º - A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo...
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Art. 10º - Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública...
 Desse modo, refletindo sobre o atentado terrorista praticado por extremistas contra o semanário francês Charlie Hebdo, podemos concluir que esse atentado não é contra a liberdade de imprensa, como centenas de outros que assassinaram jornalistas e destruíram jornais pelo mundo afora. O atentado ao Charlie Hebdo revela que as sociedades modernas, ricas e pobres, movem-se orientadas por pensamentos simplistas e maniqueístas, forjadores de violência, em virtude da separação dos três princípios revolucionários: liberdade, igualdade e fraternidade. A Marcha dos 3,8 milhões nas ruas de Paris reabre, definitivamente, o debate sobre a simetria dos modelos que criamos de República, eleições diretas e separação dos poderes, com os três pilares deixados pela Revolução Francesa de 1789.

Francisco Morbeck
Jornalista

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