OPINIÃO
Perdoem-me doutores e bacharéis da segurança
pública e da imprensa, mas suas ingenuidades no uso das palavras, repetidas à
exaustão pelos veículos de comunicação, podem ser responsáveis pelo aumento
crescente da criminalidade.
Diante do crime, tanto policiais quanto
jornalistas, são pródigos em demonstrar o valor econômico do delito. As frases
se reproduzem como pragas: dois milhões em cocaína; mais de duzentos mil em CDs
falsificados; banco assaltado em seis milhões; roubo de cem mil em joias; sonegação
de dez milhões em impostos; lesão de trezentos milhões aos cofres públicos e
tantas outras pérolas da cobertura e da aferição do crime, numa verdadeira
apologia que nem pode ser chamada de subliminar, porque o excesso de destaque
retira-lhe qualquer característica de sutileza.>>>
O Código Penal Brasileiro define apologia ao
crime como “fazer, publicamente, apologia
de fato criminoso ou de autor de crime”. Deixando claro que o bem jurídico
protegido é “a paz pública, a segurança e
a tranquilidade das pessoas da comunidade”.
No mesmo código, a apologia é tipificada como “o elogio, o louvor, o enaltecimento de
alguma coisa, fato, acontecimento ou pessoa. Fazer apologia é elogiar,
enaltecer, louvar ou transmitir por meio da manifestação concreta do pensamento
referência positiva de um determinado fato ou de uma pessoa. Pode ser realizada
através da palavra oral ou escrita ou ainda por meio de gestos, símbolos ou
outras inequívocas manifestações do pensamento, como a criação de obras de arte,
especialmente a pintura.”
Ora, se os crimes são sempre apresentados com
valores em reais e dólares, inclusive com imagens de dinheiro espalhado,
amontoado e ensacado e, por outro lado, o dinheiro é um bem desejado por todos,
não estaria aí um enaltecimento do crime?
Ninguém pode duvidar que os crimes, apresentados
em valores, com mansões, carrões, aviões etc, acabem por povoar o imaginário das
pessoas, reforçando perspectivas de enriquecimento fácil. Afinal, enquanto
alguns crimes são resolvidos e seus autores são presos com ampla cobertura da
imprensa, outros tantos continuam impunes. Se vivemos numa sociedade que reconhece
o dinheiro como propulsor de tudo, divulgar o crime em reais e dólares é
enaltecê-lo, colocando-o no subconsciente das pessoas como caminho possível
para a solução dos problemas. Uma apologia que nada tem de indireta, pois a
repetição exaustiva da mídia tem o poder de transformar o que é secundário em
primordial e o que é supérfluo em necessidade.
Porém, é importante que se reconheça: nem os policiais,
nem os jornalistas são culpados. São vítimas, como nós. Foram educados, como
nós, nessa mesma sociedade, cuja escolarização, que poderia aprimorar a
educação recebida, é pautada em repetições, execução de tarefas e concurso de
notas – do ensino fundamental ao ensino superior. Fugir desse lugar comum não é
tarefa fácil. Mesmo quando surgem tentativas de superar tais limitações,
incluindo disciplinas mais reflexivas sobre a sociedade (filosofia, sociologia,
psicologia etc), os estudantes são os primeiros a rechaçá-las, inclusive nas
universidades. Com raras exceções, mesmo a elaboração de monografias e teses,
que estimulariam o aprofundamento da compreensão da realidade, são compradas de
anunciantes que fazem propaganda até em outdoors. O resultado não poderia ser
outro: superficialidade, ausência de senso crítico, falta de criatividade. Daí
o resultado: o crime vale dinheiro. Coloque nessa lista o desemprego, os baixos
salários e as péssimas condições de vida e está pavimentada a trilha da
violência. Quem sabe compensa?
O que fazer, então?
Se já é difícil levantar a cabeça nesse mar de
lama para fazer uma leitura diferenciada da realidade, muito mais difícil é
fazer propostas efetivas que estimulem a mudança. Mas esse é o risco que
devemos correr sempre, sem medo de errar.
Por essa razão, ouso propor que, na medida do
possível, tanto a polícia quanto a imprensa, modifiquem o seu discurso diante
do crime, mensurando socialmente os seus danos, de modo a demonstrar que a
tonelada de cocaína apreendida seria capaz de matar tantas pessoas de overdose.
Que os recursos públicos desviados seriam suficientes para construir tantas
escolas. Que os impostos sonegados dariam para pagar tantas aposentadorias de
um salário mínimo. Que o dinheiro gasto para desvendar aquele roubo e prender os
ladrões poderia pagar a vacinação tantas crianças do país.
Desse modo, já que a violência mantém a
audiência – que rima infeliz! – passam a polícia e a imprensa a ter a
responsabilidade social e cultural de educar o cidadão comum, evitando que ele veja
no valor econômico de cada crime uma possibilidade efetiva de “dar a volta por
cima” em sua própria vida. A apologia é crime.