quinta-feira, 26 de setembro de 2013

CARRÃO E GRANA: IMPRENSA E POLÍCIA FAZEM APOLOGIA AO CRIME

OPINIÃO

Perdoem-me doutores e bacharéis da segurança pública e da imprensa, mas suas ingenuidades no uso das palavras, repetidas à exaustão pelos veículos de comunicação, podem ser responsáveis pelo aumento crescente da criminalidade.
Diante do crime, tanto policiais quanto jornalistas, são pródigos em demonstrar o valor econômico do delito. As frases se reproduzem como pragas: dois milhões em cocaína; mais de duzentos mil em CDs falsificados; banco assaltado em seis milhões; roubo de cem mil em joias; sonegação de dez milhões em impostos; lesão de trezentos milhões aos cofres públicos e tantas outras pérolas da cobertura e da aferição do crime, numa verdadeira apologia que nem pode ser chamada de subliminar, porque o excesso de destaque retira-lhe qualquer característica de sutileza.>>>

O Código Penal Brasileiro define apologia ao crime como “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. Deixando claro que o bem jurídico protegido é “a paz pública, a segurança e a tranquilidade das pessoas da comunidade”.
No mesmo código, a apologia é tipificada como “o elogio, o louvor, o enaltecimento de alguma coisa, fato, acontecimento ou pessoa. Fazer apologia é elogiar, enaltecer, louvar ou transmitir por meio da manifestação concreta do pensamento referência positiva de um determinado fato ou de uma pessoa. Pode ser realizada através da palavra oral ou escrita ou ainda por meio de gestos, símbolos ou outras inequívocas manifestações do pensamento, como a criação de obras de arte, especialmente a pintura.”
Ora, se os crimes são sempre apresentados com valores em reais e dólares, inclusive com imagens de dinheiro espalhado, amontoado e ensacado e, por outro lado, o dinheiro é um bem desejado por todos, não estaria aí um enaltecimento do crime?
Ninguém pode duvidar que os crimes, apresentados em valores, com mansões, carrões, aviões etc, acabem por povoar o imaginário das pessoas, reforçando perspectivas de enriquecimento fácil. Afinal, enquanto alguns crimes são resolvidos e seus autores são presos com ampla cobertura da imprensa, outros tantos continuam impunes. Se vivemos numa sociedade que reconhece o dinheiro como propulsor de tudo, divulgar o crime em reais e dólares é enaltecê-lo, colocando-o no subconsciente das pessoas como caminho possível para a solução dos problemas. Uma apologia que nada tem de indireta, pois a repetição exaustiva da mídia tem o poder de transformar o que é secundário em primordial e o que é supérfluo em necessidade.
Porém, é importante que se reconheça: nem os policiais, nem os jornalistas são culpados. São vítimas, como nós. Foram educados, como nós, nessa mesma sociedade, cuja escolarização, que poderia aprimorar a educação recebida, é pautada em repetições, execução de tarefas e concurso de notas – do ensino fundamental ao ensino superior. Fugir desse lugar comum não é tarefa fácil. Mesmo quando surgem tentativas de superar tais limitações, incluindo disciplinas mais reflexivas sobre a sociedade (filosofia, sociologia, psicologia etc), os estudantes são os primeiros a rechaçá-las, inclusive nas universidades. Com raras exceções, mesmo a elaboração de monografias e teses, que estimulariam o aprofundamento da compreensão da realidade, são compradas de anunciantes que fazem propaganda até em outdoors. O resultado não poderia ser outro: superficialidade, ausência de senso crítico, falta de criatividade. Daí o resultado: o crime vale dinheiro. Coloque nessa lista o desemprego, os baixos salários e as péssimas condições de vida e está pavimentada a trilha da violência. Quem sabe compensa?

O que fazer, então?
Se já é difícil levantar a cabeça nesse mar de lama para fazer uma leitura diferenciada da realidade, muito mais difícil é fazer propostas efetivas que estimulem a mudança. Mas esse é o risco que devemos correr sempre, sem medo de errar.
Por essa razão, ouso propor que, na medida do possível, tanto a polícia quanto a imprensa, modifiquem o seu discurso diante do crime, mensurando socialmente os seus danos, de modo a demonstrar que a tonelada de cocaína apreendida seria capaz de matar tantas pessoas de overdose. Que os recursos públicos desviados seriam suficientes para construir tantas escolas. Que os impostos sonegados dariam para pagar tantas aposentadorias de um salário mínimo. Que o dinheiro gasto para desvendar aquele roubo e prender os ladrões poderia pagar a vacinação tantas crianças do país.

Desse modo, já que a violência mantém a audiência – que rima infeliz! – passam a polícia e a imprensa a ter a responsabilidade social e cultural de educar o cidadão comum, evitando que ele veja no valor econômico de cada crime uma possibilidade efetiva de “dar a volta por cima” em sua própria vida. A apologia é crime.