OPINIÃO
A mais recente iniciativa dos
estudantes da UnB nas redes sociais, denunciando as práticas elitistas dos
professores universitários e da própria universidade no dia a dia do curso de
Relações Internacionais é um poderoso sintoma do tipo de pais que estivemos construindo,
enquanto a questão dos direitos humanos e do meio ambiente, entre outros, ocuparam
o pódio do que podemos denominar de pensamento crítico social. Na calada da
noite, encoberto pela retórica dos discursos acadêmicos e dos conhecimentos
científicos de pobres resultados, grassou e ainda grassa a pequenez da
arrogância e da prepotência cega, que impossibilita o desenvolvimento de um
modelo universitário capaz de servir à sociedade que à sustenta.
Enquanto na sociedade chegou-se
ao extremo das Audiências de Custódia, onde o juiz foca a sua observação dos
fatos investigando se a abordagem policial foi adequada na prisão do cidadão –
necessária, mas excessivamente maculada pelo entendimento de que somente as
forças policiais cometem abusos contra os direitos humanos, no ensino
universitário (apenas como exemplo) a cidadania – um dos pilares da República e
do estado democrático de direito -, é destratada, desconsiderada e perseguida
pelas prepotências imexíveis da arrogância acadêmica. Então não haveremos de
combater o assédio moral e sexual>>>
<<< dos professores sobre os estudantes? Não
haveremos de combater o preconceito contra os acadêmicos que tem filhos - para o
“pensamento crítico” professoral uma “impossibilidade de trilhar a vida
acadêmica”? Então não haveremos de combater a visão de que os estudantes não
podem “deitar para descansar” porque esta seria uma postura inadequada para
quem decidiu optar pelo curso de Relações Internacionais? Até parece que não há
povos inteiros vivendo na penúria das migrações provocadas pela guerra, nem
fome, nem exclusão econômica de milhões de pessoas no Brasil e no mundo – triste
realidade que compõe o ambiente de atuação dos futuros diplomatas. Claro, se a
academia não tiver abolido a própria realidade.
Enquadrados nesse viés elitista
imposto aos estudantes universitários, dá para ter uma ideia do papel da
vaidade, da arrogância, da prepotência e da pretensa superioridade dos acadêmicos
que sobreviverem ao próprio curso. Daí sobram exemplos do desastre inevitável
que tem marcado a presença de professores e pesquisadores alçados ao poder
executivo, legislativo e judiciário. De tal grau de negação da cidadania, que se
fez necessário que as denúncias fossem veiculadas no anonimato, para evitar,
nesse caso presumivelmente revelador, que fossem “perseguidos”. Perguntamos:
sob qual acusação?
O grande problema de nosso
processo inacabado de redemocratização, cujos ensaios foram consagrados no país
com o movimento das Diretas Já em meados de 1984-85, foi o fato de ter sido
absorvido pelas estruturas tradicionais - elitistas nas universitárias e, de
certo modo,, também no movimento sindical, que no nascimento da própria Central
Única dos Trabalhadores (CUT) optou por um modelo sindical “de empregados com
carteira assinada”, negando a integração dos movimentos sociais de gênero, raça,
de portadores de deficiência e de segregação econômica que foram essenciais,
fundamentais e decisivos na reconstrução democrática do pais. Absorção que
fundamenta a “reserva política”, própria do pensamento acadêmico, que, sem
ruborizar, intitula-se como único merecedor do quinhão dos investimentos, dos
salários e benefícios que o Estado e a iniciativa privada oferecem. Para a
elite e para o elitismo, o povo e seus instrumentos de garantia e geração de
novos direitos são estertores a serem suportados apenas dentro dos parâmetros
que não lhes retire os meritórios privilégios. Mas a chama democrática não se
apaga com discursos e tentativas de criminalizar o movimento social. Ao
contrário, o acende e, de certo modo, o alimenta. Mas, antes de tudo, é preciso
revela-los, como agora fazem os estudantes do curso de Relações Internacionais
da UnB.
Ainda ao final da década de 80,
pós-Constituinte, um grupo de ativistas de Ceilândia que desenvolvia um projeto
chamado Mandacaru, se viu às voltas com a evidência do desgaste dos instrumentos
do movimento social, entre eles o próprio movimento sindical, cujo modelo de
participação se esgotava em práticas não inclusivas. Não houve espontaneidade
nesse caminho. Resultou de uma clara opção pelo modelo engessado da
institucionalização dos movimentos sociais. De tal modo evidente a assertiva
acima, que o próprio ensaio do Partidos dos Trabalhadores em núcleos foi
abandonado pela mesma visão elitista, já enraizada no PCdoB/PCB, no PT e na CUT,
simplesmente extirpando-os, em razão do perigo de não se enquadrarem no “controle”
acomodado nas estruturas institucionais (partidos e sindicatos). Mesmo a
crítica posterior, feita a estes partidos e à CUT nos anos que se seguiram, não
se deu pelo fato de terem abandonado os movimentos sociais. Foram críticas
pontuais relacionadas à economia, às alianças políticas e à negação da reforma
agrária entre tantas. Críticas que possibilitaram o surgimento de outras
centrais sindicais e partidos políticos, mas que permaneceram na disputa das
mesmas estruturas institucionais.
Dessa percepção periférica
ceilandense, surgiu a ideia de implantar unidades orgânicas populares
encarregadas de tratar dessas minúcias de negação de direitos constitucionais e
dos direitos humanos, que se expressam nas práticas agora reveladas pelos
estudantes de Relações Internacionais da UnB. Práticas que se repetem em todos
os níveis escolares e nas prestações de serviços públicos. Na ocasião a ideia
foi sumariamente descartada por essas organizações institucionais e três
décadas transformaram direitos humanos em assunto de doutores elitistas e a
cidadania em oferta de registro de nascimento gratuito, emissão de Carteira de
Identidade, CPF e serviços esporádicos de medição de pressão, corte de cabelo,
cursos profissionalizantes relâmpagos e outras concessões do Sistema S (Sesi, Sesc
etc) com o apoio da Rede Globo. É esse o pilar da cidadania a que se refere a
Constituição de 1988 em seu artigo 1º, inciso II ao definir de que é feita a
República e o Estado Democrático de Direito? Parece óbvio que não. E, nesse
exato momento em que se denuncia a atuação disfarçada da elite para suprimir
direitos e negar a constituição de 1988, vemos tais organizações institucionais,
também divorciadas do povo, buscando os movimentos populares que abandonaram
para restabelecer – novamente – o fio umbilical que cortaram nas três décadas
passadas.
Em 1977, a greve dos estudantes
da UnB foi a ousadia inicial dos movimentos contra a ditadura e pela
redemocratização do país, antecedida pelos Movimentos Contra o Custo de Vista e
seguida pelas greves do ABC paulista em 1978. Hoje vemos novamente os
estudantes da UnB à frente de outra nova luta: transformar os direitos humanos
e constitucionais em direitos reais, que devem se expressar além dos discursos
vazios da elite e ocupar o dia a dia do cidadão. Dessa ousadia poderá surgir o
compromisso da sociedade com a efetiva criação de instrumentos populares de
controle para assegurar direitos já conquistados e criar novos direitos. O
elitismo universitário é um desserviço para a sociedade.
Brasília, 04 de junho de 2016
Francisco Ferreira Morbeck
Advogado e Jornalista
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