Em março de 1998, Fernando Henrique sancionou a Lei nº 9.613/1998 - chamada Lei da Lavagem de dinheiro, que em seu art. 7º dizia “São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: I - a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé”.
Até aí, tudo bem. Todo o dinheiro arrecadado do crime voltava para os cofres públicos. Muito justo.
Com base nessa Lei de 1998, certamente respondendo a questionamento de algum órgão, em decisão de 2008 o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) entendeu>>
<<< que “a destinação de montantes de acordos judiciais a órgãos de investigação configura afronta ao princípio da impessoalidade e pode gerar dúvidas sobre a atuação dos procuradores e delegados, diante dos resultados buscados, durante a apuração”.
Após a decisão do CNMP, ainda em 2008 e certamente por influência dos interessados no assunto, um deputado federal apresentou um projeto de Lei que, após aprovado na Câmara, foi sancionado por Dilma em julho de 2012 recebendo o nº 12.683/2012. Essa Lei modificou a Lei nº 9.613/1998 “para tornar mais eficiente a persecução (perseguição) penal dos crimes de lavagem de dinheiro”. Modificou o Inciso I do art. 7º e inseriu nele um parágrafo. Vejam:
“Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal:
COMO ERA:
“I - a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;”
COMO FICOU:
“I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;”
Veja que antes a União podia incorporar bens, direitos e valores objeto de crimes previstos na Lei. Agora ela pode incorporar bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática de crimes previstos na Lei”... Ou seja, se houver um crime, o Estado pode incorporar tudo, tenha ou não prova de que foi obtido com dinheiro ilícito. Se você tem uma casinha, um carrinho ou uma chacarazinha, trate de saber como provar que comprou tudo com dinheiro lícito e declarado, porque se não provar, um operador do Estado poderá acionar a justiça para tomar tudo de você dizendo que é fruto de dinheiro ilícito.
Mas o pior não é isso, o parágrafo primeiro, incluído no artigo 7º da mesma Lei, autoriza que o dinheiro apreendido seja utilizado “pelos órgãos federais encarregados da prevenção, do combate, da ação penal e do julgamento dos crimes previstos nesta Lei”.
Em virtude dessa alteração, debaixo do nariz do ex-ministro José Eduardo Cardozo e de Dilma Rousseff, os órgãos de controle tramaram o inconcebível, que veio em forma de pedido do Procurador Geral da República ao Supremo Tribunal Federal.
Mas, em junho de 2016, o ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, negou o pedido do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. O pedido? Que nos acordos homologados pelo STF 80% do valor total devolvido pelos delatores voltassem aos cofres públicos e 20% fosse destinado à União, mais especificamente "aos órgãos responsáveis pela negociação e pela homologação do acordo de colaboração premiada que permitiu tal repatriação”.
Mesmo com a negativa do STF, a Lava Jato está aplicando esses percentuais de 10% e 20% aos acordos feitos em Curitiba. Ao jornal Folha de São Paulo, em junho deste ano, Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos principais integrantes da Força-Tarefa, afirma que "considerando o total dos atuais acordos de colaboração e leniência a serem depositados ao longo dos anos, a Força-Tarefa pode arrecadar mais de R$ 300 milhões”. Ainda reconhece ele que “há questões práticas a serem resolvidas" e diz que "nenhuma parcela do dinheiro foi usada até agora”.
Ao que tudo indica, para que esse dinheiro seja repassado aos membros da concorrida Força-Tarefa da Lava Jato, a questão prática está sendo resolvida pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), relator das 10 Medidas Contra a Corrupção proposta pelo MP. De acordo com notícias já publicadas ele apresentou uma emenda para premiar o denunciante do crime de corrupção. Nesse caso, adivinhem quem serão os denunciantes dos maiores crimes? Uma excelente oportunidade de negócio – como denominou o mesmo procurador do MP na Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, ao explicar que “Não existe obviamente nenhum fundamento científico nisso, mas se trata da construção de uma prática do direito sancionador negocial”. Por interpretação, lá se vão os 10% ou 20% desses acordos para o bolso dos investigadores... Procure você mesmo um nome para isso.
Perdoem-me os campeões dessas interpretações permissivas que chegam ao extremo de achar que um juiz de primeira instância possa autorizar a invasão do Congresso Nacional pela Polícia Federal, quando o mesmo e a Polícia Federal sabem, ou deveriam saber, que essa competência é do Supremo Tribunal Federal. Ao que parece, adaptam para seus órgãos, consciente ou inconscientemente, às teses do intelectual nazista Carl Schimitt, para quem “o Estado deve empregar meios extra constitucionais para manter o ordenamento social ”. Sofrerão, o juiz e os policiais federais alguma punição, se o ato for considerado abusivo? Calma. Lendas são lendas e sonhos são sonhos nessa “pátria mãe tão distraída”, como na música Vai Passar, de Chico Buarque de Hollanda. Sigamos.
Coroa essa prática de excepcionalidades que negam as lendas, a manifestação recente da presidente da Suprema Corte partindo em defesa desse juiz, dizendo-se “ofendida quando um magistrado é ofendido”. Da presidente da mais alta corte a sociedade espera que se ofenda quando a constituição é ofendida. Não serve ao interesse público que juízes, desembargadores e ministros das Cortes Superiores façam discursos corporativos ou exponham suas convicções para alimentar anseios midiáticos. Deixemos esse papel para o líder sindical ou para os representantes do segmento magistral. Da Suprema Corte se espera a suprema defesa da constituição – que garante igualdade e presunção de inocência a todos os cidadãos, e disso não falou a presidente. E se o juiz tiver invadido a competência da instituição que ela representa? O que fará a presidente da Suprema Corte com seu deslize moralista e corporativista que fere o princípio da moralidade pública? Dos seus 10 ministros pares, colegas de Corte, nenhuma palavra destoante.
Como se pode ver, nosso país vive sua lenda – no sentido exato da palavra, dando razão a Charles de Gaulle quando disse que “o Brasil não é um país sério”. Óbvio: separação de poderes que não é respeitada; cláusulas pétreas que se esfumam nas mãos do Ministério Público - ocupado em impor o poder do Estado, ao contrário de exercer sua função de defender a sociedade contra toda forma de abuso; portarias e regulamentos que rasgam leis e associação duvidosa, iluminada pela imprensa, entre juízes, promotores e polícias investigativas, que não respondam por denunciação caluniosa. Tudo a nos permitir indagar: se estão desmontando o Estado democrático de direito, tais práticas e, particularmente, as Forças-Tarefas que reúnem polícias, judiciário e Ministério Público, podem ser enquadradas como organizações criminosas?
A quem recorrer contra abuso de poder ou de autoridade que possa produzir a morte do doente? Claro, nesse momento ao Congresso Nacional, que elabora a Lei do Abuso de Autoridade, acintosamente combatida pelos órgãos de controle, como fez o procurador Dallagnol dizendo que “quem está decidindo sobre essa lei são aqueles que serão presos”. É possível enquadrar na Lei de Segurança Nacional esse discurso de um representante do MP na Força-Tarefa da Lava Jato como crime que lesa ou expõe a perigo o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito (inciso II, art. 1º)?
Bom moço esse Dallagnol, a manter sempre vivo Rui Barbosa, outra vez, em tudo que aqui já se escreveu. Mas isso, convenhamos, é apenas a ponta do iceberg de um longo trabalho político que uniu em Força-Tarefa os não-políticos (como se isso fosse possível) órgãos de controle, judiciário e imprensa para criminalizar os poderes executivo e legislativo, tirando-lhes o chão. Quem não tem chão não autoridade para definir caminhos. Tudo cuidadosamente tramado dentro da lei, fazendo-nos lembrar célebre adágio popular: “todo mundo é honesto, mas minhas galinhas estão sumindo”. Se cuida, Brasil.
Francisco Morbeck
Advogado
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