Parte 1
Há alguns anos fazia sentido começar uma análise sobre a tensão entre poder do Estado e sociedade - ou poder do Estado e cidadão, tendo como base um princípio extraído da constituição ou de uma lei qualquer. Era mais fácil, dava segurança e dali estava aberta a possibilidade de encadeá-lo com o sentido pretendido. Não sei exatamente onde isso se perdeu, mas sei que há alguns poucos anos tem sido diferente, obrigando-nos a esquecer o mestre Rui Barbosa quando afirmou: “Eu quisera, nos meus antagonistas, se não justiça para comigo, ao menos lógica na ligação entre as suas premissas e as suas conclusões”.
Do ponto de vista da análise das práticas atuais dos órgãos fiscalizadores que, sem dúvida, devem representar interesses da sociedade, talvez essa “perdição” tenha ocorrido no momento em que seus operadores >>>
<<< separaram a legalidade da moralidade, esta da publicidade, aquela da impessoalidade e todas da eficiência, transformando a harmonia desse conjunto em desunião de partes autônomas. Tudo isso na ânsia, inicialmente legítima, de representar o anseio social de estancar a privatização do poder público e o desvio de recursos por meio da corrupção.
Obviamente, temos que buscar a explicação para esse fenômeno, da substituição da constituição e das leis por convicções e excepcionalidades, na opção consciente dos operadores do Estado, ou seremos obrigados a admitir que submergem da pobreza do analfabetismo funcional, que tudo lê mas pouco compreende ou, pior, substitui tudo pelo voluntarismo, prática do crime público. Mas Rui também nos legou: “As leis são um freio para os crimes públicos - a religião para os crimes secretos”. Mas voltemos aos princípios.
Observe que, para os atuais operadores do Estado uma só dessas palavras (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) nunca bastou para justificar um ato, mas qualquer uma delas, separadamente, pode produzir uma sentença de morte, elevando o senso comum à categoria de bom-senso. Tal situação lembra o princípio do remédio alopático para a cura da doença: esquece-se o doente e vai-se elevando a dose do remédio. Se o resultado for a morte em virtude dos efeitos colaterais, a culpa é do próprio doente – o médico sai ileso. Mas na relação Estado X Sociedade, o efeito colateral da morte do doente será a morte do médico, pois onde o senso comum acata, o bom senso questiona e todos vão parar na mesma cova rasa.
O resultado prático desse enredo na administração pública, que promoveu a autonomia e independência dos princípios – separando o inseparável – fruto do aprendizado acadêmico do marque um “x” na única resposta certa, tem promovido a paralisia dos órgãos executivos, pois uma ação qualquer de gestão, por mais fundamentada que seja, pode sucumbir para a responsabilização do gestor público pelos operadores dos órgãos de controle ou do judiciário, que se especializaram em jogar fora o gaveteiro quando uma de suas gavetas não abrir ou não fechar. Insistem em esquecer o lendário Rui Barbosa: “A força do direito deve superar o direito da força”.
Por essa razão, peço licença para substituir a palavra lei pela palavra “lenda”, já que não pretendo ofender aqueles que inovam, legislam e sentem-se à vontade para substituir as leis por convicções, interpretações excepcionais e outras formas de corromper a constituição atual, expressão mais recente da longa história da busca da consolidação da República, da democracia e da estabilidade das instituições brasileiras. Assim, parto para o começo, tratando, especificamente, da montagem das Forças-Tarefas, que inauguraram um novo modelo de organização para enfrentar o grave problema da corrupção.
Diz a lenda que, se houver indício de que um crime foi praticado, cabe à Polícia Federal ou Polícia Civil abrir o inquérito, investigar o fato e apresentar ao Ministério Público o autor e as provas, se os indícios se confirmarem. A investigação pode ser aberta por iniciativa própria, por denúncia de qualquer um do povo ou por solicitação do Ministério Público.
Já estou sentido os arrepios dos que querem a expressão “solicitação do MP” substituída pela palavra “ordem do MP”, mais enquadrada ao senso comum que hoje impera e que transforma a autonomia e independência dos órgãos em autonomia e independência dos seus operadores, sem se preocupar com a morte das instituições – corrupção da lenda republicana da separação de poderes -, chegando ao extremo de mobilizar a sociedade contra “qualquer poder” que se coloque em seu caminho.
Falar apenas no processo como obriga a lenda? Balela. Explicar em que instância o MP aprovou as 10 medidas contra a corrupção ou com que dinheiro foi impresso todo o material gráfico dessas 10 medidas que carregam o nome do MP? Obstrução à Lava Jato e à justiça, ponto final. Que venha Rui Barbosa, outra vez: “A especulação é no comércio uma necessidade; é nos abusos, uma inconveniência; mas entre as inconveniências dos abusos e a necessidade do uso, está, em todos os casos dessa espécie, a liberdade, que deve ser respeitada, porque se em nome de abusos possíveis nos quiserem tirar a liberdade do uso, talvez não nos deixem água para beber”. Como Rui permanece vivo! Prossigamos.
Igualmente diz a lenda que cabe ao Ministério Público analisar a denúncia e as provas do inquérito montado pelas polícias, para verificar se faz sentido a acusação quanto ao crime praticado. Se achar que procede, o Ministério Público decide qual o remédio aplicar, iniciando uma ação que é enviada ao Judiciário para que seja julgada, pressupondo a garantia do direito de defesa (antídoto contra prescrições erradas). Se achar que as provas não são conclusivas para definir a doença, o doente e o remédio, o MP pode arquivar ou devolver às Polícias para que continuem as investigações.
Ainda diz a lenda que o Juiz analisa a peça acusatória apresentada pelo Ministério Público e decide se está bem definido o criminoso, o crime e o remédio para extirpar a doença. Se concorda, ele aceita a ação. Se não concorda, ele devolve para o Ministério Público. Tudo isso para fazer valer o que nos diz, também, o lendário Rui: “A acusação é sempre um infortúnio enquanto não verificada pela prova”.
Por que esse calvário? Esse cuidado com o diagnóstico, o doente e a dosagem do remédio? Esse leva e traz, que chega a ser acusado pela imprensa, polícia e procuradores do MP de “um prende e o outro solta”? Simples. São órgãos de poderes diferentes, com atribuições constitucionais para funcionar como “fiscais” um do outro, para evitar abusos. Simples, não é? Mas tem gente que detesta simplicidade, porque complicar é uma das formas de reinar. Seguindo.
O MP pode desconsiderar a investigação, as provas e a indicação do criminoso apresentados pela Polícia Federal ou Civil, se constatar que houve ofensa às lendas ou foi promovida com interesses políticos, por exemplo. Mas nesse ambiente atual de desconstrução das lendas, até o oposto é perfeitamente possível: que o MP desqualifique o trabalho das polícias e inicie, ele mesmo, a investigação quando quer confirmar a convicção do crime. E Rui bate à nossa porta: “Os abusos são todos compadres uns dos outros, e vivem da proteção, que mutuamente se prestam”.
Por fim, nestas preliminares de cada um no seu papel, a justiça pode desconsiderar o doente, a doença e o remédio apresentados pelas polícias, bem como não aceitar o remédio acusatória do Ministério Público, se observar que houve ofensa às lendas ou foi promovida com abuso de autoridade ou poder, por exemplo. Do mesmo modo, e no sentido mais amplo, a justiça pode declarar inconstitucional uma lenda criada pelo poder legislativo, quando provocada. Também o poder legislativo pode, por meio do decreto legislativo, anular uma resolução ou portaria criada por meia dúzia de servidores públicos, se elas contrariarem uma ou mais lendas.
Estes procedimentos, no entanto, são exemplos de pesos e contrapesos com os quais os poderes se equilibram, para evitar desrespeito às lendas ou aplicação de doses perigosas de remédio. Isso se chama preservação dos fundamentos da República: cidadania, dignidade da pessoa humana e independência e harmonia entre os poderes executivo, legislativo e judiciário. Garantias para o pleno exercício da democracia e do Estado democrático de direito, como diz a lenda maior e as lendas menores. Se assim não fosse, atualmente, por conta da nossa imprensa – que parece não obedecer às mesmas lendas, lugar de criminoso é na cadeia; por conta das polícias, com raras exceções, primeiro atira depois pergunta; por conta dos operadores do Estado, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Brasília, 24 de novembro de 2016
Francisco Morbeck
Advogado
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