quarta-feira, 30 de novembro de 2016

FORÇAS TAREFAS CONSPIRAM COMO ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS? Versão Completa

Há alguns anos fazia sentido começar uma análise sobre a tensão entre poder do Estado e sociedade - ou poder do Estado e cidadão, tendo como base um princípio extraído da constituição ou de uma lei qualquer. Era mais fácil, dava segurança e dali estava aberta a possibilidade de encadeá-lo com o sentido pretendido. Não sei exatamente onde isso se perdeu, mas sei que há alguns poucos anos tem sido diferente, obrigando-nos a esquecer o mestre Rui Barbosa quando afirmou: “Eu quisera, nos meus antagonistas, se não justiça para comigo, ao menos lógica na ligação entre as suas premissas e as suas conclusões”.

Do ponto de vista da análise das práticas atuais dos órgãos fiscalizadores que, sem dúvida, devem representar interesses da sociedade, talvez essa “perdição” tenha ocorrido no momento em que seus operadores separaram a legalidade da moralidade, esta da publicidade, aquela da impessoalidade e todas da eficiência, transformando a harmonia desse conjunto em desunião de partes autônomas. Tudo isso na ânsia, inicialmente legítima, de representar o anseio social de estancar a privatização do poder público e o desvio de recursos por meio da corrupção.

Obviamente, temos que buscar a explicação para esse fenômeno, da substituição da constituição e das leis por convicções e excepcionalidades, na opção consciente dos operadores do Estado, ou seremos obrigados a admitir >>>
<<< que submergem da pobreza do analfabetismo funcional, que tudo lê mas pouco compreende ou, pior, substitui tudo pelo voluntarismo, prática do crime público. Mas Rui também nos legou: “As leis são um freio para os crimes públicos - a religião para os crimes secretos”. Mas voltemos aos princípios.

Observe que, para os atuais operadores do Estado uma só dessas palavras (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) nunca bastou para justificar um ato, mas qualquer uma delas, separadamente, pode produzir uma sentença de morte, elevando o senso comum à categoria de bom-senso. Tal situação lembra o princípio do remédio alopático para a cura da doença: esquece-se o doente e vai-se elevando a dose do remédio. Se o resultado for a morte em virtude dos efeitos colaterais, a culpa é do próprio doente – o médico sai ileso. Mas na relação Estado X Sociedade, o efeito colateral da morte do doente será a morte do médico, pois onde o senso comum acata, o bom senso questiona e todos vão parar na mesma cova rasa.

O resultado prático desse enredo na administração pública, que promoveu a autonomia e independência dos princípios – separando o inseparável – fruto do aprendizado acadêmico do marque um “x” na única resposta certa, tem promovido a paralisia dos órgãos executivos, pois uma ação qualquer de gestão, por mais fundamentada que seja, pode sucumbir para a responsabilização do gestor público pelos operadores dos órgãos de controle ou do judiciário, que se especializaram em jogar fora o gaveteiro quando uma de suas gavetas não abrir ou não fechar. Insistem em esquecer o lendário Rui Barbosa: “A força do direito deve superar o direito da força”.

Por essa razão, peço licença para substituir a palavra lei pela palavra “lenda”, já que não pretendo ofender aqueles que inovam, legislam e sentem-se à vontade para substituir as leis por convicções, interpretações excepcionais e outras formas de corromper a constituição atual, expressão mais recente da longa história da busca da consolidação da República, da democracia e da estabilidade das instituições brasileiras. Assim, parto para o começo, tratando, especificamente, da montagem das Forças-Tarefas, que inauguraram um novo modelo de organização para enfrentar o grave problema da corrupção.

Diz a lenda que, se houver indício de que um crime foi praticado, cabe à Polícia Federal ou Polícia Civil abrir o inquérito, investigar o fato e apresentar ao Ministério Público o autor e as provas, se os indícios se confirmarem. A investigação pode ser aberta por iniciativa própria, por denúncia de qualquer um do povo ou por solicitação do Ministério Público. 

Já estou sentido os arrepios dos que querem a expressão “solicitação do MP” substituída pela palavra “ordem do MP”, mais enquadrada ao senso comum que hoje impera e que transforma a autonomia e independência dos órgãos em autonomia e independência dos seus operadores, sem se preocupar com a morte das instituições – corrupção da lenda republicana da separação de poderes -, chegando ao extremo de mobilizar a sociedade contra “qualquer poder” que se coloque em seu caminho. 

Falar apenas no processo como obriga a lenda? Balela. Explicar em que instância o MP aprovou as 10 medidas contra a corrupção ou com que dinheiro foi impresso todo o material gráfico dessas 10 medidas que carregam o nome do MP? Obstrução à Lava Jato e à justiça, ponto final. Que venha Rui Barbosa, outra vez: “A especulação é no comércio uma necessidade; é nos abusos, uma inconveniência; mas entre as inconveniências dos abusos e a necessidade do uso, está, em todos os casos dessa espécie, a liberdade, que deve ser respeitada, porque se em nome de abusos possíveis nos quiserem tirar a liberdade do uso, talvez não nos deixem água para beber”. Como Rui permanece vivo! Prossigamos.

Igualmente diz a lenda que cabe ao Ministério Público analisar a denúncia e as provas do inquérito montado pelas polícias, para verificar se faz sentido a acusação quanto ao crime praticado. Se achar que procede, o Ministério Público decide qual o remédio aplicar, iniciando uma ação que é enviada ao Judiciário para que seja julgada, pressupondo a garantia do direito de defesa (antídoto contra prescrições erradas). Se achar que as provas não são conclusivas para definir a doença, o doente e o remédio, o MP pode devolver às Polícias para que continuem as investigações ou arquivar.

Ainda diz a lenda que o Juiz analisa a peça acusatória apresentada pelo Ministério Público e decide se está bem definido o criminoso, o crime e o remédio para extirpar a doença. Se concorda, ele aceita a ação. Se não concorda, ele devolve para o Ministério Público. Tudo isso para fazer valer o que nos diz, também, o lendário Rui: “A acusação é sempre um infortúnio enquanto não verificada pela prova”.

Por que esse calvário? Esse cuidado com o diagnóstico, o doente e a dosagem do remédio? Esse leva e traz, que chega a ser acusado pela imprensa, polícia e procuradores do MP de “um prende e o outro solta”? Simples. São órgãos de poderes diferentes, com atribuições constitucionais para funcionar como “fiscais” um do outro, para evitar abusos. Simples, não é? Mas tem gente que detesta simplicidade, porque complicar é uma das formas de reinar. Seguindo.

O MP pode desconsiderar a investigação, as provas e a indicação do criminoso apresentados pela Polícia Federal ou Civil, se constatar que houve ofensa às lendas ou foi promovida com interesses políticos, por exemplo. Mas nesse ambiente atual de desconstrução das lendas, até o oposto é perfeitamente possível: que o MP desqualifique o trabalho das polícias e inicie, ele mesmo, a investigação quando quer confirmar a convicção do crime. E Rui bate à nossa porta: “Os abusos são todos compadres uns dos outros, e vivem da proteção, que mutuamente se prestam”.

Por fim, nestas preliminares de cada um no seu papel, a justiça pode desconsiderar o doente, a doença e o remédio apresentados pelas polícias, bem como não aceitar o remédio acusatória do Ministério Público, se observar que houve ofensa às lendas ou foi promovida com abuso de autoridade ou poder, por exemplo. Do mesmo modo, e no sentido mais amplo, a justiça pode declarar inconstitucional uma lenda criada pelo poder legislativo, quando provocada. Também o poder legislativo pode, por meio do decreto legislativo, anular uma resolução ou portaria criada por meia dúzia de servidores públicos, se elas contrariarem uma ou mais lendas.

Estes procedimentos, no entanto, são exemplos de pesos e contrapesos com os quais os poderes se equilibram, para evitar desrespeito às lendas ou aplicação de doses perigosas de remédio. Isso se chama preservação dos fundamentos da República: cidadania, dignidade da pessoa humana e independência e harmonia entre os poderes executivo, legislativo e judiciário. Garantias para o pleno exercício da democracia e do Estado democrático de direito, como diz a lenda maior e as lendas menores. Se assim não fosse, atualmente, por conta da nossa imprensa – que parece não obedecer às mesmas lendas, lugar de criminoso é na cadeia; por conta das polícias, com raras exceções, primeiro atira depois pergunta; por conta dos operadores do Estado, manda quem pode, obedece quem tem juízo. 

Hoje, vemos exemplos da polícia declarando insatisfação pública quando o MP não aceita o resultado da investigação e vemos o MP agindo da mesma forma quando o judiciário não aceita a acusação. Vemos a imprensa defendendo pena de morte e prisão perpétua – coisas proibidas pelas lendas. Lembram crianças competindo: cada um olhando só para o seu umbigo e achando que é dono da verdade. 

Mas as lendas não são brincadeiras, porque resultam de uma espécie de acordo da sociedade para trocar a guerra pelo respeito e a convivência harmônica entre suas diferentes partes. Com razão, o povo diz que o combinado não é caro, porque descombinar gera desconfiança e insegurança, alimentos para o fracasso, o que nos faz lembrar novamente de Rui Barbosa: “A espada não é a ordem, mas a opressão; não é a tranquilidade, mas o terror; não é a disciplina, mas a anarquia; não é a moralidade, mas a corrupção; não é a economia, mas a bancarrota”.

É sobre tais pontos de vista que se pode afirmar que uma Força-Tarefa que unifica, numa só ação, representantes de poderes distintos (órgãos executores, fiscalizadores e judiciais), é uma aberração institucional sem previsão em nenhuma lenda, que pode redundar no inquérito ideal para a peça acusatória (aja ou não doença verdadeira) e esta, também ideal, para a condenação judicial.

O conceito de "Força-Tarefa" foi criado pela Marinha dos EUA visando montar forças navais temporárias, destinadas ao cumprimento de determinadas missões, organizadas na exata medida das tarefas a cumprir. É a tarefa a cumprir que impulsiona a criação da Força-Tarefa, cujo desenrolar não altera o objetivo pré-determinado e pré-definido. Isso é perfeitamente adequado no caso de uma ação militar que obedece a um comando superior, mas quem exerce o comando superior de uma Força-Tarefa investigativa que tem representantes de várias instituições com atribuições diferenciadas? Que lenda o autoriza?

Não se conhece uma única Força-Tarefa, militar ou não, que tenha sido concluída pela improcedência, porque cabe a seus atores apenas cumprir ordens superiores que já estão decididas pelas razões que pré-determinaram a montagem da própria Força-Tarefa. Se assim é, essa prática, mesmo justificada pela eficiência, nada tem de constitucional, porque os cinco princípios da administração pública não se separam e devem ser lidos assim: legalidade + impessoalidade + moralidade + publicidade + eficiência. Se uma só palavra justificasse tudo não precisaria escrever as outras. De que adianta um Força-Tarefa Eficiente se não respeitar a legalidade? De que adianta se ela for usada de um jeito para uns e de um jeito para outros, separando-se da impessoalidade? Eficiência sem honestidade na condução do trabalho não seria imoral? Eficiência usando o princípio da publicidade como justificativa para a divulgação jornalística de informações escolhidas em claro confronto com a impessoalidade que se exige dos operadores do Estado? Não. Assim rasgam-se as lendas e “Ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito”, como nos legou o ex-ministro do STF Maurício Corrêa, no Habeas Corpus 73454 RJ.

Porém, esclareça-se, o que desautoriza esse tipo de Força-Tarefa institucional é a natureza independente e harmônica dos próprios órgãos que a compõe, cujas atribuições conflitantes são instrumentos que asseguram o princípio da separação dos poderes (legislativo, executivo e judiciário), exatamente para evitar que um deles concentre o poder ou que promova abusos. Essa união só é aceitável e legítima como ato político de iniciativa dos seus operadores (não institucional), se a motivação for principiológica: defesa da República, da democracia ou da paz social, por exemplo, ou em prol de direitos sociais, salariais ou profissionais. Atribuições típicas dos sindicatos e entidades representativas dos diversos segmentos profissionais que integram os órgãos de controle e o poder judiciário, mas não das instituições, porque estas não pertencem a seus operadores.

Corro sério risco ao sustentar minha esperança nas lendas, pois não há liberdade de expressão que seja capaz de valer se o horizonte se fundamenta em exceções, convicções, excepcionalidades e outros véus que disfarçam o abuso de autoridade e de poder. Mas, como em II Coríntios 3:12 “tendo, pois, tal esperança, usamos de muita ousadia no falar”, esclareço que minha causa é comum aos que se sentirem ofendidos: o Brasil.

Na sequência dessa colaboração que aqui se expõe, imaginemos a montagem de uma Força-Tarefa para fiscalizar as eleições, já que hoje a política se encontra criminalizada por outra Força-Tarefa informal que nenhuma lenda sustenta: imprensa + órgãos de controle + polícias + judiciário. Não nessa ordem, necessariamente. Experimentação atualíssima, em que o sequestro do Estado pelos tecnoburocratas exibe seus passos com direito a fundo musical, manchetes de jornais e capas de revista. Para investigar o poder executivo e o poder legislativo, temos modelos de Forças-Tarefas em execução, mas com que órgãos faremos uma Força-Tarefa para investigar o poder judiciário, as polícias e o Ministério Público? Se não há uma solução, teremos que concluir que tem algo errado nesse modelo, afinal a lenda é para todos - princípio da igualdade. Venha pois, eterno Rui Barbosa: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. Voltemos. 

Essa Força-Tarefa Eleitoral imaginária, com a motivação pré-determinada de combater a corrupção e os corruptos, reuniria representantes das polícias, do Tribunal Regional Eleitoral, do Ministério Público Eleitoral e do Superior Tribunal Eleitoral. Nem Maquiavel, o príncipe das artimanhas do poder, arquitetaria tal façanha. Uma junção de órgãos, que permitiria agilizar medidas prévias contra candidatos (prisões investigativas, abertura de processos, denúncias do MP e outras), colocando-os como suspeitos na mídia e, obviamente, direcionando a decisão do eleitor, como foi o caso recente do Diretor do FBI que enviou uma carta ao Congresso Americano dizendo que iria investigar e-mails de Hillary alguns dias antes da eleição em que ela era a favorita. Sequestro perfeito da democracia, que nesse episódio favoreceu Trump. Absurdo pensar assim? Nem tanto. 

Recentemente o cansado juiz Sérgio Moro, recolhido em sua residência e apoiado por sua esposa, publicou um vídeo em que lê um trecho do discurso de Theodore Roosevelt, ex-presidente dos EUA, feito em dezembro de 1905, brindando seu público com trechos de combate à corrupção, do qual extraio o mais significativo: “A exposição e punição da corrupção pública é uma honra para uma nação, não uma desgraça. A vergonha reside na tolerância, não na correção”. É o que ele tem feito, disso ninguém duvida. 

Mas haveremos de indagar: se a primeira transmissão da voz humana por meio de ondas de rádio só foi executada em 1906 pelo engenheiro canadense Reginald Fessenden e a televisão só começou a transmitir em março de 1935 pelos alemães em plena ascensão do nazismo, qual era o tamanho do dano dessa exposição defendida por Roosevelt? Mínima. Alguns discursos e periódicos pouco lidos, pois a quase totalidade da população americana era analfabeta, vez que as escolas públicas só começaram a ser implantadas nos Estados Unidos a partir do século XX. 

Assim, sem discordar do propósito de Moro, afirmo que foge totalmente ao princípio da razoabilidade pinçar um trecho de um discurso de 1905 para justificar o massacre da exposição midiática atual de qualquer cidadão do século XXI. Hoje tal exposição é uma sentença de morte pública. Ademais, o importante discurso de Roosevelt contra a corrupção, não pode ser separado de outras partes do mesmo discurso, omitidas por Moro, que cito apenas para ilustrar:

  1. “Não pedindo nada, a não ser que o interesse de cada um seja harmonizado com o interesse do público em geral, e que a conduta de cada um esteja em conformidade com as regras fundamentais da obediência à lei, da liberdade individual e da justiça e do tratamento justo para com todos”
  2. “Todo homem deve ter a garantia de sua liberdade e do seu direito de fazer o que quiser com sua propriedade ou seu trabalho, desde que não infrinja os direitos dos outros. Nenhum homem está acima da lei e nenhum homem está abaixo dela. Nem pedimos permissão a qualquer homem quando exigimos que ele a obedeça. A obediência à lei é exigida como um direito”.
  3. “Nunca se deve esquecer que a cidadania é, para citar as palavras recentemente utilizadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, um "patrimônio inestimável".
  4. “Sob nossa forma de governo toda a autoridade é investida no povo e por eles delegados àqueles que os representam em capacidade oficial”.

Moro já cometeu o erro de justificar a prática da publicidade das escutas telefônicas comparando a Lava Jato com o caso do Watergate nos EUA, sob o argumento de que a sociedade tem o direito de saber dos abusos praticados por membros do governo, mas esqueceu de dizer que a sociedade americana puniu aqueles que praticaram as escutas ilegais, inclusive provocando a renúncia do ex-presidente Richard Nixon, porque ele sabia da ilegalidade praticada pelos operadores do Estado e divulgava trechos montados das conversas. 

Portanto, o oposto do que hoje faz a Lava Jato, pelo fato de que aqui não se cogita punir quem pratica a ilegalidade. Aliás, considerada tão “normal” por Moro que essa é uma das 10 Medidas Contra a Corrupção que ele defendeu em Audiência Pública na Câmara dos Deputados: reconhecer a prova ilegal realizada de boa-fé (?!). Somada a outras duas: obrigação do judiciário requisitar o parecer do MP para conceder habeas corpus e simulação (flagrante preparado) de teste de integridade dos servidores públicos pelos órgãos de controle, e podemos duvidar das verdadeiras intenções dessas medidas. Que venha Rui Barbosa em nosso socorro: "As leis que não protegem nossos adversários não podem proteger-nos".

É isso que querem dois milhões de cidadãos brasileiros que avalizaram as 10 Medidas Contra a Corrupção? Aliás, devíamos fazer como fazem os órgãos de controle: conferir as assinaturas e ligar para um bom milhar desses apoiadores para saber se eles assinaram no escuro ou são capazes de apontar duas ou três dessas propostas. Não é preciso um grande esforço intelectual, nem uma mente brilhante para juntar essas medidas com a cruzada que se realiza contra a Lei do Abuso de Autoridade para ter uma ideia de onde se quer chegar. Sim, porque as 10 medidas contra a corrupção ficarão na história como o devaneio de tentar parir o Quinto Poder (dos órgãos de controle) debaixo das barbas dos três poderes. O Quarto já é a mídia. “Eu não troco a justiça pela soberba. Eu não deixo o direito pela força. Eu não esqueço a fraternidade pela intolerância. Eu não substituo a fé pela superstição, a realidade pelo ídolo”. Salve Rui Barbosa.

Brava gente brasileira, brava República tropicana, que tem sua resistência testada por Forças-Tarefas tão reconhecidamente ilegais que nenhuma portaria, de nenhum de seus órgãos, se atreveu a publicar sua composição integral, pois não há atribuição que justifique juntar o que deve estar separado, vez que são órgãos que devem manter vigilância entre si para garantir o devido processo legal, o estado democrático de direito, a transparência e a legalidade dos atos praticados - essas lendas. Mas, como Dom Quixote, afirmando verdades que a realidade desmente, sigo para reduzir as dúvidas, pois não faltará quem queira me esclarecer, considerando o que penso como “desentendimento”. Então vejamos.

De modo simples, acessível até na internet, toda Força-Tarefa implica num objetivo pré-determinado, mas nenhuma referência a unir órgãos que se fiscalizam entre si, nem por definição nem por lenda. Porque se for investigar, é atribuição da Polícia Civil ou Federal (poder executivo). Se for promover uma ação judicial a partir da investigação – é atribuição do Ministério Público. Se for julgar, é atribuição do poder judiciário. Cada um com sua função, em regular e constante vigilância sobre o outro, para evitar abuso de autoridade, abuso de poder ou objetivos inconfessáveis não previstos nas lendas.

Desse modo, só é possível admitir a legalidade de uma Força-Tarefa quando ela é feita dentro de cada um dos órgãos: Força-Tarefa de delegados e agentes da Polícia Federal ou Civil; Força-Tarefa de promotores do Ministério Público ou Força-Tarefa de juízes, mantendo-se a independência de cada um em relação aos outros. Se juntando esses órgãos em Forças-Tarefas já podemos vislumbrar uma ilegalidade, imagine o que se pode dizer de Forças-Tarefas clandestinas, que se realizam sem qualquer procedimento legal, mas que podem promover a combinação entre os operadores dos diversos órgãos. Onde as lendas não são respeitadas a busca da verdade corre o risco de deixar de ser o motor da atividade dos operadores do Estado.

Temos o dever de preservar nossa República, que não pode ser sequestrada por operadores que “se acham”, como diz o povo. Operadores, com raras exceções, que se especializaram nas táticas para passar em concursos; defenderam teses de mestrado e doutorado no exterior sem saber falar a língua daquele país; foram aprovados em concursos de marcação de “x” e acham que são campeões olímpicos com direito à medalha de ouro e ao pódio. Pior ainda quando comprovam a superficialidade de seus conhecimentos, contratando marqueteiros políticos para orientar suas “ações isentas” ou desqualificam qualquer opinião contrária às suas convicções, como se o debate quanto ao Estado democrático de direito (de todos) fosse uma contenda entre eles (os certos) e os outros (os errados). O resultado é um espetáculo de senso comum, com o qual se sentem autorizados a negar a constituição com um regulamento debaixo do braço e a negar as lendas com uma resolução ou convicção pseudo-jurídica.  

Em março de 1998, Fernando Henrique sancionou a Lei nº 9.613/1998 - chamada Lei da Lavagem de dinheiro, que em seu art. 7º dizia “São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: I - a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé”.
Até aí, tudo bem. Todo o dinheiro arrecadado do crime voltava para os cofres públicos. Muito justo.

Com base nessa Lei de 1998, certamente respondendo a questionamento de algum órgão, em decisão de 2008 o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) entendeu que “a destinação de montantes de acordos judiciais a órgãos de investigação configura afronta ao princípio da impessoalidade e pode gerar dúvidas sobre a atuação dos procuradores e delegados, diante dos resultados buscados, durante a apuração”.

Após a decisão do CNMP, ainda em 2008 e certamente por influência dos interessados no assunto, um deputado federal apresentou um projeto de Lei que, após aprovado na Câmara, foi sancionado por Dilma em julho de 2012 recebendo o nº 12.683/2012. Essa Lei modificou a Lei nº 9.613/1998 “para tornar mais eficiente a persecução (perseguição) penal dos crimes de lavagem de dinheiro”. Modificou o Inciso I do art. 7º e inseriu nele um parágrafo. Vejam:

“Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal:COMO ERA: “I - a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;”COMO FICOU: “I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;”
Veja que antes a União podia incorporar bens, direitos e valores objeto de crimes previstos na Lei. Agora ela pode incorporar bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática de crimes previstos na Lei”... Ou seja, se houver um crime, o Estado pode incorporar tudo, tenha ou não prova de que foi obtido com dinheiro ilícito. Se você tem uma casinha, um carrinho ou uma chacarazinha, trate de saber como provar que comprou tudo com dinheiro lícito e declarado, porque se não provar, um operador do Estado poderá acionar a justiça para tomar tudo de você dizendo que é fruto de dinheiro ilícito. 

Mas o pior não é isso, o parágrafo primeiro, incluído no artigo 7º da mesma Lei, autoriza que o dinheiro apreendido seja utilizado “pelos órgãos federais encarregados da prevenção, do combate, da ação penal e do julgamento dos crimes previstos nesta Lei”.

Em virtude dessa alteração, debaixo do nariz do ex-ministro José Eduardo Cardozo e de Dilma Rousseff, os órgãos de controle tramaram o inconcebível, que veio em forma de pedido do Procurador Geral da República ao Supremo Tribunal Federal. 

Mas, em junho de 2016, o ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, negou o pedido do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. O pedido? Que nos acordos homologados pelo STF 80% do valor total devolvido pelos delatores voltassem aos cofres públicos e 20% fosse destinado à União, mais especificamente "aos órgãos responsáveis pela negociação e pela homologação do acordo de colaboração premiada que permitiu tal repatriação”. 

Mesmo com a negativa do STF, a Lava Jato está aplicando esses percentuais de 10% e 20% aos acordos feitos em Curitiba. Ao jornal Folha de São Paulo, em junho deste ano, Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos principais integrantes da Força-Tarefa, afirma que "considerando o total dos atuais acordos de colaboração e leniência a serem depositados ao longo dos anos, a Força-Tarefa pode arrecadar mais de R$ 300 milhões”. Ainda reconhece ele que “há questões práticas a serem resolvidas" e diz que "nenhuma parcela do dinheiro foi usada até agora”. 

Ao que tudo indica, para que esse dinheiro seja repassado aos membros da concorrida Força-Tarefa da Lava Jato, a questão prática está sendo resolvida pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), relator das 10 Medidas Contra a Corrupção proposta pelo MP. De acordo com notícias já publicadas ele apresentou uma emenda para premiar o denunciante do crime de corrupção. Nesse caso, adivinhem quem serão os denunciantes dos maiores crimes? Uma excelente oportunidade de negócio – como denominou o mesmo procurador do MP na Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, ao explicar que “Não existe obviamente nenhum fundamento científico nisso, mas se trata da construção de uma prática do direito sancionador negocial”. Por interpretação, lá se vão os 10% ou 20% desses acordos para o bolso dos investigadores... Procure você mesmo um nome para isso.

Perdoem-me os campeões dessas interpretações permissivas que chegam ao extremo de achar que um juiz de primeira instância possa autorizar a invasão do Congresso Nacional pela Polícia Federal, quando o mesmo e a Polícia Federal sabem, ou deveriam saber, que essa competência é do Supremo Tribunal Federal. Ao que parece, adaptam para seus órgãos, consciente ou inconscientemente, às teses do intelectual nazista Carl Schimitt, para quem “o Estado deve empregar meios extra constitucionais para manter o ordenamento social”. Sofrerão, o juiz e os policiais federais alguma punição, se o ato for considerado abusivo? Calma. Lendas são lendas e sonhos são sonhos nessa “pátria mãe tão distraída”, como na música Vai Passar, de Chico Buarque de Hollanda. Sigamos.

Coroa essa prática de excepcionalidades que negam as lendas, a manifestação recente da presidente da Suprema Corte partindo em defesa desse juiz, dizendo-se “ofendida quando um magistrado é ofendido”. Da presidente da mais alta corte a sociedade espera que se ofenda quando a constituição é ofendida. Não serve ao interesse público que juízes, desembargadores e ministros das Cortes Superiores façam discursos corporativos ou exponham suas convicções para alimentar anseios midiáticos. Deixemos esse papel para o líder sindical ou para os representantes do segmento magistral. Da Suprema Corte se espera a suprema defesa da constituição – que garante igualdade e presunção de inocência a todos os cidadãos, e disso não falou a presidente. E se o juiz tiver invadido a competência da instituição que ela representa? O que fará a presidente da Suprema Corte com seu deslize moralista e corporativista que fere o princípio da moralidade pública? Dos seus 10 ministros pares, colegas de Corte, nenhuma palavra destoante.

Como se pode ver, nosso país vive sua lenda – no sentido exato da palavra, dando razão a Charles de Gaulle quando disse que “o Brasil não é um país sério”. Óbvio: separação de poderes que não é respeitada; cláusulas pétreas que se esfumam nas mãos do Ministério Público - ocupado em impor o poder do Estado, ao contrário de exercer sua função de defender a sociedade contra toda forma de abuso; portarias e regulamentos que rasgam leis e associação duvidosa, iluminada pela imprensa, entre juízes, promotores e polícias investigativas, que não respondam por denunciação caluniosa. Tudo a nos permitir indagar: se estão desmontando o Estado democrático de direito, tais práticas e, particularmente, as Forças-Tarefas que reúnem polícias, judiciário e Ministério Público, podem ser enquadradas como organizações criminosas? 

A quem recorrer contra abuso de poder ou de autoridade que possa produzir a morte do doente? Claro, nesse momento ao Congresso Nacional, que elabora a Lei do Abuso de Autoridade, acintosamente combatida pelos órgãos de controle, como fez o procurador Dallagnol dizendo que “quem está decidindo sobre essa lei são aqueles que serão presos”. É possível enquadrar na Lei de Segurança Nacional esse discurso de um representante do MP na Força-Tarefa da Lava Jato como crime que lesa ou expõe a perigo o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito (inciso II, art. 1º)?

Bom moço esse Dallagnol, a manter sempre vivo Rui Barbosa, outra vez, em tudo que aqui já se escreveu. Mas isso, convenhamos, é apenas a ponta do iceberg de um longo trabalho político que uniu em Força-Tarefa os não-políticos (como se isso fosse possível) órgãos de controle, judiciário e imprensa para criminalizar os poderes executivo e legislativo, tirando-lhes o chão, porque sem chão não há autoridade para definir caminhos. Tudo cuidadosamente tramado dentro da lei, fazendo-nos lembrar célebre adágio popular: “todo mundo é honesto, mas minhas galinhas estão sumindo”. Se cuida, Brasil. 

PS: E nem falei da evidente colaboração que a Lava Jato abriu para os delatores fazerem acordos com os EUA para processar a Petrobrás. Assunto que merece tratamento com base na Lei de Segurança Nacional. 

Brasília, 24 de novembro de 2016

Francisco Morbeck
Advogado

Nenhum comentário: