07/10/2012
Se, para ter lisura, a política deve se espelhar nas práticas do judiciário, o fim da República está próximo.
A democracia como a praticamos, desde a Revolução Francesa de 1789, equilibra-se sobre três pilares distintos: legislativo, executivo e judiciário. O legislativo é o que atua em nome dos interesses da sociedade. Mas, a revolução, receosa dos riscos de substituir a monarquia por um novo poder sem medidas, mesmo que em nome do povo, opôs-lhe um poder correspondente, também sufragado, a que chamamos de poder executivo, cuja tarefa é administrar o Estado. Nesse equilíbrio-confronto entre legislativo e executivo, a sociedade teria condições de prosseguir com sua tarefa primordial de consolidar as novas atribuições que a revolução trouxera para indivíduos, grupos e Estado, tanto separadamente, quanto uns em relação aos outros. Na efervescência do pensamento iluminista, que já havia destronado a monarquia, não havia espaço para lacunas, pois eram grandes os riscos de retrocesso ao modelo feudal se outro modelo não fosse formalmente instituído e implantado em toda a nação francesa, a que custo fosse. Somente os que viveram ou estudaram esse período da história francesa que consolidou a democracia como modelo de organização social pós-feudalismo, sabem o rio de sangue que ela custou.
Estabelecidos estes dois poderes (legislativo e executivo), era preciso evitar a paralização do país, da sociedade e do Estado, caso houvesse um confronto insanável entre essas duas partes representativas da sociedade. Surge, então, o terceiro pilar de sustentação: o judiciário, parte essencial para restabelecer qualquer desequilíbrio nas duas faces do poder consolidado pelo voto direto. Eis aqui, portanto, a essencial diferença entre os pilares da democracia: dois poderes sufragados nas urnas e um poder de uso comum das duas partes em qualquer momento de dissenso. Inadmissível confundir suas atribuições. Um não haveria de substituir ou submeter o outro, sob pena de entregar os destinos do sagrado rio de sangue a uma nova jornada de insegurança social sem precedentes, com os riscos de se restabelecerem projetos autoritários de controle social e exceções de imprevisíveis consequências.
Ao custo de longo processo de acumulação de erros, defeitos e virtudes, cada um desses poderes construiu seu modus operandi, verdadeiros contratos sociais em que as partes litigam em pretensa harmonia, expressando avanços e retrocessos próprios da efervescência social que representam. Mas, para a funcionalidade desses três pilares, da riqueza de possibilidades que vem do clamor social surgem outros atores, também essenciais à democracia: os partidos políticos e as diversas formas de organização da sociedade, para influir, pressionar e promover a consolidação de suas visões de singularidades, particularidades e universalidades. Se os três
pilares da democracia não se confundem e têm atribuições próprias e diferenciais, muito menos estes se confundem com as outros formas de organização do tecido social vivo. Enquanto os três pilares promovem suas ações dentro de parâmetros legalmente determinados - o que lhes obriga a existir sob a égide de uma camisa de força que os torna lentos, modorrentos e, de certo modo, inatingíveis para quem não lhes domina as entranhas, as representações da sociedade civil vivem da efervescência e da volatividade próprias dos movimentos sociais, o que lhes proíbe imitar a pachorra dos modus operandis dos três poderes que sustentam a democracia. Nos três poderes a comunicação formal é o meio pelo qual interagem, estando impedidos de proceder de outro modo, pois que só podem agir dentro das permissões legais. Tal premissa não se deve, nem se pode, exigir das organizações sociais, pois que elas são regidas pelos institutos constitucionais da liberdade de organização, liberdade de expressão, liberdade de pensamento e outros direitos consagrados. Apenas no momento em que as organizações sociais se relacionam com os três poderes, ou com seus órgãos próprios, é que se há de exigir-lhes a adequação aos modus operandis que constituem esses poderes.
Beira então ao escárnio, ao abuso de autoridade e à leviandade intelectual juízes, procuradores, desembargadores, ministros de supremos tribunais e representantes do poder judiciário considerarem “impróprios”, “ilegais” e “imorais” o modo peculiar das organizações da sociedade civil, particularmente, dos partidos políticos que nesse momento são alvos de “isenta” interpretação no julgamento do Ação Penal 470 - que a imprensa chama de mensalão. Estranham os juízes que os acordos políticos no âmbito do congresso nacional, promovidos entre os deputados e entre estes e o executivo, tenham que ser feitos sem ofícios e memorandos e sejam “confirmados” após telefonema para este ou aquele ator político. Um juiz não pode soltar um preso por telefone, mas um parlamentar pode, e deve, fazer seu trabalho com o uso de sua ferramenta: a palavra, que vem do latim parolare, pois isso são chamados de parlamentares.
Do uso das palavras para as tratativas políticas, intuem os próceres da lei a evidência de prática criminosa e nela se baseiam para identificar “bandos” e “chefes de quadrilhas”. Trazem para a cena política – de modo absolutamente desrespeitoso com a vontade soberana de quem elegeu os parlamentares, suas experiências da jurisdição com bandidos que controlam tráfico, execuções e assaltos de dentro das cadeias. Revelam, para além de suas desejosas intelectualidades jurídicas, que não conseguem emergir do domínio da banalização da violência que os meios de comunicação impingem às massas. Certamente trafegam pela Avenida Brasil e Cheias de Charme como qualquer cidadão que tem medo de sair de casa para o quintal. Confundem o verdadeiro com o imaginário, no melhor estilo das novelas que colocam na
mesma cena a arte das personagens e suas tramas com a presença de personalidades do mundo real.
O poder legislativo tem dinâmica própria, ritual processual próprio, com prazos diferenciados e exíguos em diversas de suas obrigações, para assegurar o funcionamento regular, legal e constitucional do Estado. Fosse o poder legislativo gerido pelas normativas do poder judiciário, poderíamos estar votando hoje o orçamento da União de duas ou três décadas atrás. Situação impossível. Seria o caos para a sociedade, a educação, a economia, a cultura, a agricultura, a indústria, o comércio, as importações e as exportações. O desenvolvimento, já fragilizado nesse ambiente de equilíbrio republicano, seria uma ilusão de déspotas vestidos de toga.
Não há ingenuidade nesse imbróglio a que o STF se presta. Há, infelizmente, uma tentativa de impor à política e seus representantes legitimamente eleitos, as práticas do universo formal do judiciário. É preciso, urgentemente, que se diga a estes senhores da justiça – certamente inexperientes fora do universo judicante, que os partidos políticos são organizações civis autônomas das quais não se pode exigir que incorporem o modus operandi do judiciário. Lembremos-lhes que é a própria sociedade que está a exigir, veementemente, uma revolução nesse modus operandi judicante, que agora querem usar como modelo para as organizações sociais: um modelo elitista, oneroso, moroso e profundamente burocrático, que deixa sem proteção jurídica milhões de cidadãos cuja renda não permite a proteção da lei, mesmo considerando os ensaios da abandonada justiça gratuita.
O julgamento da Ação Penal 470 prova que a expertise da magistratura brasileira, com raríssimas exceções, é feita do malabarismo de firulas. Trabalho árduo tem os doutrinadores para dar sistematização às interpretações do judiciário na aplicação das leis. Mas, francamente, não pode o judiciário querer que esqueçamos toda a história da República – sem nenhuma revisão ao longo de mais de século - em que não faltam exemplos de submissão dos tribunais aos interesses de ditadores, de descaso com desaparecidos políticos e de insensibilidade com milhares de prisioneiros de suas leituras elitistas, prepotentes e preconceituosas contra tudo que não vista toga e não fale a sua língua. Nesse momento, a serviço do clamor midiático em que o STF tenta impor balelas como modelo para a sociedade inteira, seus ministros transvestem-se, à la Caetano, em algozes “do que não é espelho”. Abandonam a segurança jurídica para optar por um arremedo de Tribunal de Exceção, com viés próprio de temporalidade e excepcionalidade que lhe são peculiares. Se não há lei ou interpretação que seja adequada ao propósito preestabelecido de condenar, que seja a lei decepada, picotada, dilacerada e jogada no limbo das próximas gerações. Tal Corte aferra-se ao badalar dos sinos midiáticos e nele já vislumbra o nascer do sol, abdicando de sua responsabilidade de conferir se há clarão no horizonte.
Em verdade, vergonhosamente, o STF tripudia daqueles que, nesse mesmo modus operandi que agora condenam, entregaram-lhes nas mãos a estabilidade institucional da República pós Diretas Já, que acaba de completar vinte e poucos anos. Movimento político que restituiu a liberdade de imprensa, a liberdade sindical, garantiu o voto direto para presidente, governadores, senadores e prefeitos, bem como consolidou direitos fundamentais da democracia como o habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, presunção de inocência e o fim dos tribunais de exceção e da prisão arbitrária. Institutos consagrados para assegurar direitos humanos e abolir o Estado autoritário e o abuso de poder de um passado ditatorial recente. Os tribunais de exceção, ou seus arremedos como é o caso, são constituídos de verdades opostas aos princípios básicos do direito constitucional-processual, tais como: contraditório e ampla defesa, legalidade, igualdade, dignidade da pessoa humana, juiz natural, e todos os demais princípios relacionados ao devido processo legal, o que faz de seus julgados farsas jurídicas. Esse o motivo pelo qual tais tribunais são mais comuns em estados ditatoriais, onde não há punição para o magistrado que erra, nem pena, nem multa, nem ação regressiva, nem nada. Quando muito uma aposentadoria antecipada. As ditaduras não brotam de normas autorizativas, mas do desrespeito aos princípios da legalidade. No momento em que a mídia divulga bandidos reunidos em tribunal próprio para “julgar” seus pares, obviamente em um arremedo de justiça, soa tragicamente profano o STF abandonar seu papel institucional de restabelecimento do equilíbrio – leia-se justiça, para constituir-se em tribunal político. Estávamos acostumados a ver essa confusão reinar entre o legislativo e o executivo, onde o governo legisla e tem “líder no congresso” assim como os parlamentares tem “verbas a receber do executivo” e possuem “cargos no governo”. Resta-nos, nesse momento de perplexidade, rogar aos nossos lustrosos intelectuais de toga, que voltem seus olhos para a história e busquem, também na França dos iluministas que esqueceram, os ensinamentos do caso Dreyfus. Aceitar que a mídia diga que o país será outro depois desse julgamento é, no mínimo, burlesco, pois essa mesma jurisprudência – que abandona o ato de ofício como prova do crime – não será útil para “condenar” magistrados comparando seus ganhos declarados com o patrimônio que reuniram ao longo de suas trajetórias. Para os amigos, os favores da lei. Para os inimigos, os rigores da lei. O povo bem o diz. Coloca-se em dúvida as opiniões do ministro Ricardo Lewandowsky ou as supostas ligações do ministro Dias Toffoli com o PT, quando sabe-se que o todo poderoso do momento, ministro Joaquim Barbosa, foi alçado ao STF por indicação de José Dirceu no fogo etílico de uma meia noite no Armazém do Ferreira, em Brasília, local frequentado pelo magistrado semanalmente. Ao contrário do STF não temos uma prova, temos centenas. Basta entrevistar os frequentadores daquele estabelecimento às sextas-feiras à noite para comprovar a assiduidade etílica que o levou, entre um copo e outro, ao mais alto cargo do judiciário brasileiro. Usando o mesmo raciocínio jurídico da desnecessidade do ato de ofício para comprovar a culpa que o STF agora utiliza – teoria do domínio do fato, podemos asseverar: José Dirceu, agora monstro, e Joaquim Barbosa, agora baluarte da moralidade, são farinha do mesmo saco, frutos
de uma evidente “dissidência” do núcleo criminoso do qual o algoz da Ação Penal 470 fazia parte, comprovando a máxima de que, cedo ou tarde, a criatura revolta-se contra o criador. Como Roberto Jefferson, um dos condenados dessa mesma ação penal, Joaquim Barbosa cospe no prato que comeu. Daí, e só daí, vem a certeza da acusação, do conhecimento de causa. De onde vem Tiradentes vem Silvério dos Reis. Nada mais nos impede. Mas não há razão para que percamos a esperança diante dessa avalanche midiática que ameaça soterrar O papel da justiça como “algodão” entre taças, nas palavras do Ministro Marco Aurélio. A sociedade brasileira, com sua extraordinária capacidade de conviver pacificamente e fazer do limão uma limonada, passadas as luzes dos pretensos heroísmos, deve nos surpreender com a proposição dessa farsa como tema para um futuro desfile de escola de samba na passarela da vida. A música já está pronta, na voz inquieta de João Bosco dos tempos ditatoriais: “Não põe corda no meu bloco, não vem com seu carro chefe, não dá ordem ao pessoal. Não traz lema nem divisa, porque a gente não precisa que organizem nosso carnaval”. Certamente, para o STF, essa homenagem popular seja a maior derrota. Afinal, como consumidores frequentes de endereços nobres e do pensamento europeu e Americano, a elite magistral brasileira não leva o carnaval a sério nem acredita na capacidade do povo brasileiro. Mas antecipa, exemplarmente, a reação há muito elucidada pelo dito popular: quem tem fome não houve conselhos. O STF tem fome de quê?
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