sábado, 4 de julho de 2015

ENSINO DOMICILIAR: DIREITO DE ACERTAR DOS PAIS

Diversas notícias dão conta de um confronto aberto do poder público contra pais que decidiram educar seus filhos em casa. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), última instância a que recorreu uma família de Canela-RS, após ter essa pretensão negada pelo juiz de 1ª instância e pelo tribunal regional daquele estado.
Os pais argumentam serem capazes de escolarizar seus filhos com qualidade superior ao que hoje é oferecido pelas escolas públicas e privadas. Eis aí um embate de grande atualidade: quem escolariza melhor? Educar, a gente já sabe, não é a principal tarefa da escola. A ela cabe oferecer uma escolarização, suspostamente fundamentada num conjunto de “informações” de natureza “universal”, que se traduz em “aquilo que todos devem saber”.
Ocorre que, apesar do esforço individual de muitos professores, a qualidade
dessa escolarização não é assegurada/disponibilizada pelo Estado brasileiro e suas escolas públicas. Tampouco o é pelas escolas da iniciativa privada. Para ambas, a qualidade é pressuposto de “maior acesso à tecnologias e diversidade de atividades complementares (dança, judô, música etc)” e a qualidade se traduz em “quantidade maior de atividades calcadas em repetição e apreensão de conteúdos”.
Ao longo do tempo o significado maior da escola como ambiente de liberdade de conhecimento, deu lugar a uma visão academicista que privilegia a disseminação de ideias meramente especulativas sem nenhum efeito imediato ou prático em detrimento da descoberta – em que o aprendiz, sua vivência e sua percepção do mundo são partes essenciais de um aprendizado capaz de torná-lo apto à cidadania, por meio do constante exercício da consciência de sua própria existência.
Afora os meandros do direito e das responsabilidades constitucionais da família na educação – limites em que se debruçará o STF, querer o Estado impedir a escolarização na família é, antes de tudo, a confirmação de uma visão pobre das infinitas possibilidades da educação e da transmissão de conhecimentos. Revela o compreensível limite do aprendizado desses diplomados em suas próprias escolarizações, talvez confirmando a máxima de Millôr Fernandes, para quem a escola é o ambiente em que melhor prospera o medíocre – aquele que sem ela não conseguiria chegar a lugar nenhum. O que esse conflito tem de importante é possibilitar o debate sobre a qualidade da escola.
Não importa se o ponto de partida seja a crítica aos pais pela manutenção de criança em "bolhas" como querem os técnicos e estudiosos ou outro aspecto qualquer. Seja qual for, terá que ser precedido da quebra da barreira que os técnicos e educadores das academias colocam contra quem se aventura no debate educacional, no qual os pais comumente são tratados como leigos, que desconhecem as bases teóricas da Educação. Barreiras tão esdrúxulas que impedem o exercício do magistério até por Paulo Freire – teórico brasileiro da educação, em virtude dele não possuir “formação acadêmica”. Se não tiver filho na escola então... nem pensar. Superado isso, o debate pode prosperar, tendo como pressupostos o respeito e o foco no essencial.
Sabe-se que nenhum cidadão comum conhece medicina, direitos trabalhistas, segurança pública ou educação, mas sua voz soa longe quando ele identifica o essencial: o mau-trato, o abandono e a desumanidade. Mais recentemente, na área dos direitos humanos, por exemplo, muitas mobilizações por melhorias contra discriminações e preconceitos geraram significativas mudanças, que frutificaram dessas constatações singelas. Na educação não poderia ser diferente, a ignorância é o nosso ponto de partida. Daí a importância da corajosa iniciativa dessa família gaúcha, que não se calou diante do primeiro e do segundo graus judiciários, reprodutores da visão de um Estado que deseja impor o senso comum como se fosse bom senso. Não foi fácil para a família. Nosso país é pródigo em criminalizar aqueles que não se curvam ao establishment1.
Para que o cidadão se coloque contra o médico, o empresário, o Estado, a justiça, o policial ou o professor, registre um boletim de ocorrência e aventure-se nos meandros da justiça para buscar seus direitos numa dada circunstância, veja algumas barreiras que ele tem que superar:
1. O desconhecimento dos seus direitos como cidadão;
2. O medo de contrapor-se ao Estado e aos “deuses” médicos, empresários, juízes, policiais ou professores, suas razões infinitas ou suas condições privilegiadas;
3. A descrença nos profissionais da segurança pública no ato do registro da ocorrência, que consideram secundária qualquer situação em que não haja "morto" e prova material do crime;
4. A impaciência com a burocracia que envolve o inquérito, as provas, as formalidades da justiça etc;
5. A insegurança com a qualidade do atendimento da Defensoria Pública, que pode não ir além do cumprimento da exigência legal de um defensor público na ação;
6. A insegurança pela falta de dinheiro para pagar um advogado que faça o acompanhamento regular da causa;
7. A desconfiança com a morosidade da Justiça e suas interpretações personalistas;
8. A incerteza com o resultado final da garantia do seu direito como cidadão pelo Juiz.
9. O medo de ser penalizado ou perseguido pela ousadia;
10. O receio de não ter tempo disponível para fazer-se presente em todas essas etapas;
11. O receio de ser tratado como ignorante a qualquer momento;
12. A incerteza de ainda estar vivo quando acontecer o julgamento final de sua causa;
13. A desconfiança com o judiciário, já que ele, suspostamente, não pode julgar a motivação dos atos do poder público;
14. A desilusão com a judicialização, já que ela dá mais importância à burocracia (prazos, por exemplo) do que se é justa ou injusta a pretensão.

Sendo assim, independente da absolvição ou da crucificação, qualquer cidadão que chegue ao final dessa via crucis merece uma indenização moral, por demonstrar credulidade e perseverança em suas convicções, mesmo quando todos os fatores lhes são absolutamente desfavoráveis no alcance do seu direito. Enquanto o cidadão gasta o tempo e o dinheiro que não tem nesse calvário, ganham juízes, servidores públicos, professores, médicos e policiais os seus salários.
O STF tem plenas condições de tratar da questão com a profundidade que ela merece, seja buscando sustentação na liberdade, na co-responsabilidade constitucional da família ou nas lições do passado que não servem para os dias de hoje. Não há de se impressionar com as falácias dos que trazem à tona crimes, denúncias e outros abusos pretensamente cometidos quando, por meios próprios, os pais querem assegurar a escolarização de qualidade aos seus filhos, pois essa ressonância do senso comum - abstraída do massacre midiático dos meios de comunicação que fazem do crime o seu sustento, aí se alimenta para tentar imprimir uma visão autoritária da relação do Estado com a sociedade.
Cabe ao STF tirar os holofotes desses algozes do establishment que não se dão conta de que suas práticas podem conduzir a um modelo de Estado que nega direitos, subverte o papel da família ou, pior, facilita o fortalecimento do modelo educacional robotizado, que retira o protagonismo da criança e do adolescente no processo de ensino-aprendizagem.
Não cabe apenas ao Estado a responsabilidade da escolarização dos filhos. Cabe a ele colocar-se a serviço dos cidadãos para que sejam capazes de manter as bases da civilização que, acreditamos, sejam interativas, integrativas e participativas no mundo de hoje. Se o Estado é pródigo em errar quando cumpre suas responsabilidades, nada mais justo que assegurar, aos pais, o direito de tentar oferecer o melhor para seus filhos.
Francisco Morbeck
Professor, Jornalista e Advogado

Glossário:

1 Establishment - ... Em sentido depreciativo, designa uma elite social, econômica e política que exerce forte controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando como base dos poderes estabelecidos. O termo se estende às instituições controladas pelas classes dominantes, que decidem ou cujos interesses influem fortemente sobre decisões políticas, econômicas, culturais, etc, e que portanto controlam, no seu próprio interesse e segundo suas próprias concepções, as principais organizações públicas e privadas de um país, em detrimento da maioria dos eleitores, consumidores, pequenos acionistas etc.

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