Diversas notícias dão conta de um confronto aberto do poder público
contra pais que decidiram educar seus filhos em casa. O caso chegou ao Supremo
Tribunal Federal (STF), última instância a que recorreu uma família de
Canela-RS, após ter essa pretensão negada pelo juiz de 1ª instância e pelo
tribunal regional daquele estado.
Os pais argumentam serem capazes de escolarizar seus filhos com
qualidade superior ao que hoje é oferecido pelas escolas públicas e privadas.
Eis aí um embate de grande atualidade: quem escolariza melhor? Educar, a gente
já sabe, não é a principal tarefa da escola. A ela cabe oferecer uma
escolarização, suspostamente fundamentada num conjunto de “informações” de
natureza “universal”, que se traduz em “aquilo que todos devem saber”.
Ocorre que, apesar do esforço individual de muitos professores, a
qualidade
dessa escolarização não é assegurada/disponibilizada pelo Estado
brasileiro e suas escolas públicas. Tampouco o é pelas escolas da iniciativa
privada. Para ambas, a qualidade é pressuposto de “maior acesso à tecnologias e
diversidade de atividades complementares (dança, judô, música etc)” e a qualidade
se traduz em “quantidade maior de atividades calcadas em repetição e apreensão
de conteúdos”.
Ao longo do tempo o significado maior da escola como ambiente de
liberdade de conhecimento, deu lugar a uma visão academicista que privilegia a disseminação
de ideias meramente especulativas sem nenhum efeito imediato ou prático em
detrimento da descoberta – em que o aprendiz, sua vivência e sua percepção do
mundo são partes essenciais de um aprendizado capaz de torná-lo apto à
cidadania, por meio do constante exercício da consciência de sua própria
existência.
Afora os meandros do direito e das responsabilidades constitucionais da
família na educação – limites em que se debruçará o STF, querer o Estado
impedir a escolarização na família é, antes de tudo, a confirmação de uma visão
pobre das infinitas possibilidades da educação e da transmissão de conhecimentos.
Revela o compreensível limite do aprendizado desses diplomados em suas próprias
escolarizações, talvez confirmando a máxima de Millôr Fernandes, para quem a
escola é o ambiente em que melhor prospera o medíocre – aquele que sem ela não
conseguiria chegar a lugar nenhum. O que esse conflito tem de importante é
possibilitar o debate sobre a qualidade da escola.
Não importa se o ponto de partida seja a crítica aos pais pela
manutenção de criança em "bolhas" como querem os técnicos e
estudiosos ou outro aspecto qualquer. Seja qual for, terá que ser precedido da
quebra da barreira que os técnicos e educadores das academias colocam contra
quem se aventura no debate educacional, no qual os pais comumente são tratados
como leigos, que desconhecem as bases teóricas da Educação. Barreiras tão
esdrúxulas que impedem o exercício do magistério até por Paulo Freire – teórico
brasileiro da educação, em virtude dele não possuir “formação acadêmica”. Se
não tiver filho na escola então... nem pensar. Superado isso, o debate pode
prosperar, tendo como pressupostos o respeito e o foco no essencial.
Sabe-se que nenhum cidadão comum conhece medicina, direitos trabalhistas,
segurança pública ou educação, mas sua voz soa longe quando ele identifica o essencial:
o mau-trato, o abandono e a desumanidade. Mais recentemente, na área dos
direitos humanos, por exemplo, muitas mobilizações por melhorias contra
discriminações e preconceitos geraram significativas mudanças, que frutificaram
dessas constatações singelas. Na educação não poderia ser diferente, a
ignorância é o nosso ponto de partida. Daí a importância da corajosa iniciativa
dessa família gaúcha, que não se calou diante do primeiro e do segundo graus
judiciários, reprodutores da visão de um Estado que deseja impor o senso comum
como se fosse bom senso. Não foi fácil para a família. Nosso país é pródigo em criminalizar
aqueles que não se curvam ao establishment1.
Para que o cidadão se coloque contra o médico, o empresário, o Estado, a
justiça, o policial ou o professor, registre um boletim de ocorrência e
aventure-se nos meandros da justiça para buscar seus direitos numa dada
circunstância, veja algumas barreiras que ele tem que superar:
1. O desconhecimento dos seus direitos
como cidadão;
2. O medo de contrapor-se ao Estado e
aos “deuses” médicos, empresários, juízes, policiais ou professores, suas
razões infinitas ou suas condições privilegiadas;
3. A descrença nos profissionais da
segurança pública no ato do registro da ocorrência, que consideram secundária
qualquer situação em que não haja "morto" e prova material do crime;
4. A impaciência com a burocracia que
envolve o inquérito, as provas, as formalidades da justiça etc;
5. A insegurança com a qualidade do
atendimento da Defensoria Pública, que pode não ir além do cumprimento da
exigência legal de um defensor público na ação;
6. A insegurança pela falta de dinheiro
para pagar um advogado que faça o acompanhamento regular da causa;
7. A desconfiança com a morosidade da
Justiça e suas interpretações personalistas;
8. A incerteza com o resultado final da
garantia do seu direito como cidadão pelo Juiz.
9. O medo de ser penalizado ou
perseguido pela ousadia;
10. O receio de não ter tempo
disponível para fazer-se presente em todas essas etapas;
11. O receio de ser tratado como
ignorante a qualquer momento;
12. A incerteza de ainda estar vivo
quando acontecer o julgamento final de sua causa;
13. A desconfiança com o judiciário, já
que ele, suspostamente, não pode julgar a motivação dos atos do poder público;
14. A desilusão com a judicialização,
já que ela dá mais importância à burocracia (prazos, por exemplo) do que se é
justa ou injusta a pretensão.
Sendo assim, independente da absolvição ou da crucificação, qualquer
cidadão que chegue ao final dessa via crucis merece uma
indenização moral, por demonstrar credulidade e perseverança em suas
convicções, mesmo quando todos os fatores lhes são absolutamente desfavoráveis
no alcance do seu direito. Enquanto o cidadão gasta o tempo e o dinheiro que
não tem nesse calvário, ganham juízes, servidores públicos, professores, médicos
e policiais os seus salários.
O STF tem plenas condições de tratar da questão com a profundidade que
ela merece, seja buscando sustentação na liberdade, na co-responsabilidade
constitucional da família ou nas lições do passado que não servem para os dias
de hoje. Não há de se impressionar com as falácias dos que trazem à tona crimes,
denúncias e outros abusos pretensamente cometidos quando, por meios próprios, os
pais querem assegurar a escolarização de qualidade aos seus filhos, pois essa
ressonância do senso comum - abstraída do massacre midiático dos meios de comunicação
que fazem do crime o seu sustento, aí se alimenta para tentar imprimir uma
visão autoritária da relação do Estado com a sociedade.
Cabe ao STF tirar os holofotes desses algozes do establishment que
não se dão conta de que suas práticas podem conduzir a um modelo de Estado que nega
direitos, subverte o papel da família ou, pior, facilita o fortalecimento do
modelo educacional robotizado, que retira o protagonismo da criança e do
adolescente no processo de ensino-aprendizagem.
Não cabe apenas ao Estado a responsabilidade da escolarização dos filhos.
Cabe a ele colocar-se a serviço dos cidadãos para que sejam capazes de manter
as bases da civilização que, acreditamos, sejam interativas, integrativas e
participativas no mundo de hoje. Se o Estado é pródigo em errar quando cumpre
suas responsabilidades, nada mais justo que assegurar, aos pais, o direito de
tentar oferecer o melhor para seus filhos.
Francisco Morbeck
Professor, Jornalista e Advogado
Glossário:
1 Establishment - ... Em sentido
depreciativo, designa uma elite social, econômica e política que exerce forte
controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando como base dos poderes
estabelecidos. O termo se estende às instituições controladas pelas classes
dominantes, que decidem ou cujos interesses influem fortemente sobre decisões
políticas, econômicas, culturais, etc, e que portanto controlam, no seu próprio
interesse e segundo suas próprias concepções, as principais organizações
públicas e privadas de um país, em detrimento da maioria dos eleitores,
consumidores, pequenos acionistas etc.
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