quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O ministério Público, o médico e o monstro

O Ministério Público, o médico e o monstro

OPINIÃO - 21/08/2013 - ANTONIO FERNANDO PINHEIRO PEDRO

Dentre os atores institucionais atuantes na resolução dos conflitos, em especial os de natureza ambiental, o MP (Ministério Público) é, sem dúvida, o melhor equipado.
A Constituição Federal conferiu ao MP condições funcionais, materiais e técnicas que superam em muito os demais órgãos da Administração Pública, inclusive o Poder Judiciário.

Detém o MP capacidade de buscar ajustamento de conduta junto aos atores envolvidos, superando impasses legais, burocráticos e até mesmo judiciais, podendo, nesse mister, fazer uso de seu poder de requisição e persecução.
Quando falham os meios de resolução extrajudicial, pode e deve o MP fazer uso do monopólio de que dispõe no ajuizamento de ações penais de natureza ambiental, bem como da desproporcional capacidade de instruir, elaborar e ajuizar ações civis públicas, visando a reparação dos danos causados ou imposição de obrigação de fazer ou não fazer ao recalcitrante.
A conflituosidade intrínseca aos direitos de natureza difusa, como o ambiental, torna o papel da instituição ministerial mais destacada ainda, por óbvio impactando toda e qualquer atividade de natureza política ou econômica afeta àquela matéria. Essa importância do MP cresce ainda mais na hipótese de ocorrer judicialização, mormente por ser cediço que a tutela judicial não significa efetiva resolução do conflito.
Dupla personalidade
Ocorre, no entanto, que o MP tem multiplicado episódios de perda do foco na sua atuação. Esses fatos têm gerado repetidos questionamentos quanto ao valor, a eficiência e a finalidade do órgão no regime democrático republicano brasileiro – sempre seguidos de debates apaixonados e reações corporativistas preocupantes.
É como se existissem dois Ministérios Públicos:
a- do lado bom, um zeloso cumpridor dos seus deveres constitucionais, defensor dos valores morais, da legalidade e do Estado de Direito, por todos admirado;
b- do lado mau, um feroz criador de casos, arrogante, arbitrário, beirando à leviandade, causador de instabilidade institucional e nocivo às instituições democráticas da República.
“O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, novela de ficção científica e terror, escrita pelo autor escocês Robert Louis Stevenson (1886), narra a história de um advogado londrino chamado Gabriel John Utterson, que investiga estranhas ocorrências entre seu velho amigo, Dr. Henry Jekyll, e o malvado Edward Hyde.
Como um velho amigo do Ministério Público, e também advogado, me inspiro no personagem de Utterson para entender o que ocorre com essa importante instituição.
O que  ocorre?
A capacidade de fiscalização, tutela e entendimento da lei, por parte do MP, não raro se vê diluída em interesses ideológicos biocentristas, contaminada por históricos de militâncias e ativismos políticos, tornando a instituição refém de interesses pouco afetos à sua finalidade constitucional.
Essa diluição de atribuições desagua no caudal de matérias exógenas à competência legal do órgão. Com isso, em vez de resolver, o MP GERA conflitos.
É  notícia comum promotores e procuradores ditarem regras, fazerem pronunciamentos, emitirem recomendações ou ajuizarem ações visando impor teorias, ideias preconcebidas do que seja  a correta matriz energética nacional, organização territorial do sistema de geração de energia, definição de vetores de planejamento territorial e políticas de desenvolvimento (discutidas no bojo do processo legislativo e na esfera de decisão governamental), critérios e metas de desenvolvimento econômico regional, demanda por infraestrutura, prioridades de interesses econômicos e ambientais, política florestal,  etc.
O diagnóstico
Embora constituído por indivíduos concursados e investidos na carreira pública, não é o MP Poder da República, formulador de Políticas Públicas ou governamentais.
Não detém o MP mandato popular ou investidura constitucional para conduzir formular ou articular política, se imiscuir na esfera de decisão afeta aos poderes da república  e dirigir entes federativos. O seu limite é seu próprio objeto de atuação: a fiscalização da lei, a defesa dos interesses difusos e coletivos e o ajustamento de conduta para a resolução dos conflitos decorrentes.
Não compete ao MP GERAR conflitos, ESTIMULAR ou ARTICULAR discórdias ideológicas, políticas ou partidárias.
Há de fato muita confusão entre o que deve pensar a instituição e o que efetivamente pensa o membro oficiante. Isso decorre da excessiva autonomia concedida pela estrutura do MP a seus promotores e procuradores.
A absoluta autonomia dos membros do MP, até mesmo face às instituições de coordenação especializadas, existentes nos respectivos órgãos (objeto de outro artigo de minha autoria – “A Ditadura da Caneta”), confere insegurança jurídica e estimula idiossincrasias comportamentais, não condizentes com o princípio da unicidade na tutela da lei, esperada da corporação. O fato só tem contribuído para maior judicialização das demandas ambientais.
Análise comparativa
Essa autonomia sem controle constitui teratologia institucional sem paralelo no mundo.
Nos Estados Unidos, o Procurador  Geral da República (“The United States Attorney General”) é indicado pelo Presidente e aprovado pelo Senado, sendo demissível ad nutum pelo próprio Presidente. O Procurador Geral chefia 94 (noventa e quatro) Procuradores Federais Distritais (“United States Attorneys”) que também são nomeados e podem ser demitidos. O Procurador-Geral da República e os Procuradores Federais Distritais têm autoridade para nomear e demitir seus assistentes, denominados respectivamente como “Assistant United States Attorney General” e “Assistant United States Attorneys” – isso no âmbito federal americano.
Na França, o MP é hierarquizado e integra o Poder Judiciário, estando submetido ao controle do Ministério da Justiça. O Ministro da Justiça detém poder para impor sanções disciplinares aos membros do MP, o que inclui até a destituição do cargo, após parecer de caráter consultivo do Conselho Superior da Magistratura. Esse Conselho é composto por cinco membros: um juiz, um conselheiro de Estado, eleito pela Assembleia Geral do Conselho de Estado, e três personalidades que não pertencem nem ao Parlamento nem ao Poder Judiciário, designados pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia Nacional e pelo Presidente do Senado. 
Já na Itália, o MP integra o judiciário e se submete ao Conselho Superior da Magistratura. Segundo a Constituição da Itália, esse Conselho é presidido pelo Presidente da República e composto por 21 membros, dos quais 14 são juízes de carreira eleitos pela classe e sete são indicados pelo Parlamento, dentre professores e advogados. Ele tem como atribuição aplicar sanções disciplinares, desde advertências até a destituição do cargo. O procedimento disciplinar pode ser iniciado tanto pelo Procurador-Geral, quanto pelo Ministro da Justiça.
O Ministério Público italiano, ademais, não tem entre as suas atribuições a defesa da sociedade nem legitimidade para ingressar em Juízo representando-a. Autonomia, portanto, não significa ausência de hierarquia e controle, interno e externo, como ocorre hoje no Brasil.
A cura
A instituição do MP deveria assegurar que seus membros coordenassem ações visando aspectos legais decorrentes dos conflitos ambientais. Deveria evitar, de forma sistemática, que promotores e procuradores se imiscuíssem em procedimentos técnicos ou administrativos típicos dos órgãos de governo, legal e politicamente competentes. Deveria coibir também o uso de mecanismos persecutórios para influenciar decisões de caráter político.
A independência ilimitada concedida aos procuradores do MP brasileiro, como se vê, não tem paralelo no âmbito internacional e deve ser observada com reserva e cautela pelo Poder Judiciário, pelo Poder Executivo e, sobretudo, pelo Poder Legislativo, pois se trata de perigosa deformidade institucional com risco latente de distorcer o Estado Democrático de Direito.
A gloriosa  luta  contra a corrupção,   que não é travada  com  exclusividade pelo MP,  por  fim,  não  pode  servir   de   apanágio para  inibir  iniciativas  legítimas, acovardar  políticos, estimular militâncias  pouco  comprometidas  com  o regime pluralista e, assim, impedir que se busque corrigir uma distorção grave que  afeta nossa democracia, nossos direitos e garantias  fundamentais, a  harmonia entre os poderes e o desenvolvimento sustentável.

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