Num país em
que a elite econômica é culturalmente pobre, é inegável a dificuldade de todos
os extratos sociais trazerem para o mundo da realidade o que se entende por estado
democrático de direito. Apesar do extraordinário avanço da Constituição de 1988
na garantia de direitos individuais e sociais, a sociedade brasileira do século
XXI movimenta-se em eterna luta em prol
de direitos já consagrados na carta magna ou mesmo nas leis.
Logo nos
primeiros semestres da graduação de direito, vê-se o universitário às voltas
com tal conflito elementar, ao deparar-se com o fato de que os códigos de processo
– ou seja, o modo como tramitam os papéis -, tem o poder de negar direitos assegurados
pela>>>
constituição e pelas leis. São incontáveis as decisões em que se enterra o
direito pleiteado em virtude do atraso na entrega dos papéis ou a incompletude
sanável dos mesmos. Prazos que são definidos também para a administração pública,
o judiciário e órgãos de controle, mas que, curiosamente, servidores públicos, juízes
e promotores não respeitam ou respeitam quando querem, sem que possa o cidadão –
tratado como um ser imaterial – exigir respeito, muito menos falar em direitos.
O fenômeno
não é novo e parece fruto da corrosão dos princípios, momento em que a
praticidade do autoritarismo e do abuso de autoridade acirram o caos pretendendo
eliminá-lo.
Muitas
sociedades históricas já vivenciaram esse conflito. Os impérios egípcios e
romanos foram formatados nesse ambiente, em que a praticidade foi alçada ao
limite dos horrores, como no caso dos cristãos em Roma (que eles decidiram
matar) entregues como alimento para os leões (que eles tinham que alimentar). Assim
também foi nas sociedades coloniais, onde escravidão, tortura e morte conviviam
com cândidos rituais sacerdotais de purificação e adoração a Deus.
Outras
sociedades experimentaram essa substituição do direito pelas soluções práticas do pensamento burocrático. Os extremos
couberam ao bolchevismo russo, ao nazismo alemão, ao fascismo italiano e a
revolução maoísta. Mas, em grau menor, cresce aqui o número de vítimas diárias
dessa sanha de realeza nos moldes de Luís XIV – “L'État c'est moi" (O Estado sou eu), praticada pelos nossos operadores da máquina burocrática, aí incluso, o próprio Ministério Público que se considera “acima” do Estado.
Não sei se
por esse viés, podemos nos dar ao luxo do Jogo
do Contente, como faria Pollyana,
de Eleanor H.
Porter, para concluir que nossa
sociedade está cada dia mais próxima do pós-autoritarismo, porque a prática já chegou
ao Supremo Tribunal Federal, que ontem estabeleceu revisão de sua própria jurisprudência
reconhecendo a validade da prisão no caso de confirmação da sentença penal pela
segunda instância judicial, sob aplausos do Procurador Geral da República,
representante do Ministério Público Federal, cuja atribuição constitucional é fazer
cumprir as leis.
Por sete
votos o STF oficializou que os tribunais superiores optam por soluções submissas
à visão burocrática de esvaziar artificialmente as prateleiras dos tribunais, mesmo
que vítimas dos erros, abusos e conluios do judiciário e do Ministério Público
feneçam, antecipadamente, nas mãos das organizações criminosas que dominam as
precárias prisões brasileiras. Tudo isso para evitar uma devassa nas razões de
sua própria ineficiência, contrária ao princípio constitucional.
Vozes se
espalham pelo país para denunciar as últimas atrocidades cometidas pelo establishment que controla a justiça ao
seu bel prazer. A operação lava-jato virou operação lava-gato, ao desviar a
investigação do tríplex do Lula para o sítio do Lula, em razão de terem
encontrado imóvel dos Marinhos da rede Globo no nome da Mossack Fonseca, empresa denunciada como
laranja do tríplex de Lula. Bater em Lula, sim. Na família marinho e na rede
Globo, jamais.
Prisões são
feitas nos moldes da Santa Inquisição da Idade Média, imitando a arte do
saudoso dramaturgo Dias Gomes em A Santa
Inquisição, cujo foco foi outra fase autoritária: a ditadura militar
iniciada em 1964.
Procuradores
do Ministério Público travestem-se de verdadeiros comentaristas midiáticos
antecipando investigações e prisões em franco desrespeito à lei, que exige
obediência ao princípio constitucional da presunção de inocência. Mas, quem
fiscaliza o MP?
Ocupada com
a praticidade burocrática que substituiu a investigação pela lógica do “primeiro
prende depois pergunta”, a Polícia Federal arranja tempo para ocupar-se com o
escárnio de “autorizar” o uso da máscara do seu funcionário “japonês” no
carnaval de 2016.
A alegação para rasgar os arts. 8º, 9º e 11º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, suplantar os constituintes de 1988 e
legislar, em substituição aos atuais 513 deputados e 81 senadores, invalidando
o inciso LVII, art. 5º da Constituição Federal, onde lê-se que “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória” - que é o esgotamento do direito de defesa -, é
embasada na morosidade da justiça que favorece a prescrição dos crimes. Ou
seja, omitem-se da verdadeira mudança - que seria a combinação da eficiência do judiciário com a supressão da decadência e da prescrição
penal pelo legislativo -, para continuar alimentando o ambiente de favores inerentes ao Estado burocrático de direito, mesmo
que o preço da decisão seja atirar o cidadão inocente aos leões.
Francisco Ferreira Morbeck
Advogado e jornalista
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