quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

REFERENDANDO O ESTADO BUROCRÁTICO DE DIREITO, STF LANÇA CIDADÃO AOS LEÕES


Num país em que a elite econômica é culturalmente pobre, é inegável a dificuldade de todos os extratos sociais trazerem para o mundo da realidade o que se entende por estado democrático de direito. Apesar do extraordinário avanço da Constituição de 1988 na garantia de direitos individuais e sociais, a sociedade brasileira do século XXI movimenta-se em eterna luta em prol de direitos já consagrados na carta magna ou mesmo nas leis.

Logo nos primeiros semestres da graduação de direito, vê-se o universitário às voltas com tal conflito elementar, ao deparar-se com o fato de que os códigos de processo – ou seja, o modo como tramitam os papéis -, tem o poder de negar direitos assegurados pela>>>
constituição e pelas leis. São incontáveis as decisões em que se enterra o direito pleiteado em virtude do atraso na entrega dos papéis ou a incompletude sanável dos mesmos. Prazos que são definidos também para a administração pública, o judiciário e órgãos de controle, mas que, curiosamente, servidores públicos, juízes e promotores não respeitam ou respeitam quando querem, sem que possa o cidadão – tratado como um ser imaterial – exigir respeito, muito menos falar em direitos.
O fenômeno não é novo e parece fruto da corrosão dos princípios, momento em que a praticidade do autoritarismo e do abuso de autoridade acirram o caos pretendendo eliminá-lo.
Muitas sociedades históricas já vivenciaram esse conflito. Os impérios egípcios e romanos foram formatados nesse ambiente, em que a praticidade foi alçada ao limite dos horrores, como no caso dos cristãos em Roma (que eles decidiram matar) entregues como alimento para os leões (que eles tinham que alimentar). Assim também foi nas sociedades coloniais, onde escravidão, tortura e morte conviviam com cândidos rituais sacerdotais de purificação e adoração a Deus.
Outras sociedades experimentaram essa substituição do direito pelas soluções práticas do pensamento burocrático. Os extremos couberam ao bolchevismo russo, ao nazismo alemão, ao fascismo italiano e a revolução maoísta. Mas, em grau menor, cresce aqui o número de vítimas diárias dessa sanha de realeza nos moldes de Luís XIV – “L'État c'est moi" (O Estado sou eu), praticada pelos nossos operadores da máquina burocrática, aí incluso, o próprio Ministério Público que se considera “acima” do Estado.
Não sei se por esse viés, podemos nos dar ao luxo do Jogo do Contente, como faria Pollyana, de Eleanor H. Porter, para concluir que nossa sociedade está cada dia mais próxima do pós-autoritarismo, porque a prática já chegou ao Supremo Tribunal Federal, que ontem estabeleceu revisão de sua própria jurisprudência reconhecendo a validade da prisão no caso de confirmação da sentença penal pela segunda instância judicial, sob aplausos do Procurador Geral da República, representante do Ministério Público Federal, cuja atribuição constitucional é fazer cumprir as leis.
Por sete votos o STF oficializou que os tribunais superiores optam por soluções submissas à visão burocrática de esvaziar artificialmente as prateleiras dos tribunais, mesmo que vítimas dos erros, abusos e conluios do judiciário e do Ministério Público feneçam, antecipadamente, nas mãos das organizações criminosas que dominam as precárias prisões brasileiras. Tudo isso para evitar uma devassa nas razões de sua própria ineficiência, contrária ao princípio constitucional.
Vozes se espalham pelo país para denunciar as últimas atrocidades cometidas pelo establishment que controla a justiça ao seu bel prazer. A operação lava-jato virou operação lava-gato, ao desviar a investigação do tríplex do Lula para o sítio do Lula, em razão de terem encontrado imóvel dos Marinhos da rede Globo no nome da Mossack Fonseca, empresa denunciada como laranja do tríplex de Lula. Bater em Lula, sim. Na família marinho e na rede Globo, jamais.
Prisões são feitas nos moldes da Santa Inquisição da Idade Média, imitando a arte do saudoso dramaturgo Dias Gomes em A Santa Inquisição, cujo foco foi outra fase autoritária: a ditadura militar iniciada em 1964.
Procuradores do Ministério Público travestem-se de verdadeiros comentaristas midiáticos antecipando investigações e prisões em franco desrespeito à lei, que exige obediência ao princípio constitucional da presunção de inocência. Mas, quem fiscaliza o MP?
Ocupada com a praticidade burocrática que substituiu a investigação pela lógica do “primeiro prende depois pergunta”, a Polícia Federal arranja tempo para ocupar-se com o escárnio de “autorizar” o uso da máscara do seu funcionário “japonês” no carnaval de 2016.
A alegação para rasgar os arts. 8º, 9º e 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, suplantar os constituintes de 1988 e legislar, em substituição aos atuais 513 deputados e 81 senadores, invalidando o inciso LVII, art. 5º da Constituição Federal, onde lê-se que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” -  que é o esgotamento do direito de defesa -, é embasada na morosidade da justiça que favorece a prescrição dos crimes. Ou seja, omitem-se da verdadeira mudança - que seria a combinação da eficiência do judiciário com a supressão da decadência e da prescrição penal pelo legislativo -, para continuar alimentando o ambiente de favores inerentes ao Estado burocrático de direito, mesmo que o preço da decisão seja atirar o cidadão inocente aos leões. 

Francisco Ferreira Morbeck
Advogado e jornalista

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